O encoberto: a comédia do impostor
Por
Jorge Eduardo Magalhães
RESUMO
Este é um estudo da
comédia O Encoberto, de Natália
Correia, obra esta que ficou proibida de ser encenada em Portugal durante todo
o período fascista e ditatorial por fazer um cruzamento entre a ficção e a
história, ou seja, criar personagens fictícios e confrontá-los com personagens
reais.
Em sua primeira parte “Introdução”, este estudo mostra a influência de
grandes nomes da Literatura Portuguesa, como Almeida Garrett e Alexandre
Herculano, sobre a autora Natália Correia, e traça um paralelo entre o período
do domínio filipino em Portugal, no séc. XVI e a ditadura salazarista, séc. XX.
No capítulo “O cruzamento
entre ficção e história”, são apresentados os fatos e personagens reais que
ajudaram a autora a compor a peça O
Encoberto. No capítulo “A estrutura do texto”, são apresentadas as três
partes da obra e os recursos utilizados pela autora como as didascálias e a
metalinguagem, o que faz lembrar a comédia paliata do séc. III a.C. No capítulo
“A simbologia do discurso das personagens”, a presença do coro como uma espécie
de oráculo; a fala das personangens, principalmente as populares, estão
envoltas de toda uma simbologia de descontentamento e insatisfação e o uso de
ambiguidades e ironias por parte da autora ao aproximar os discursos da
realidade.
Percebemos que Natália
fala de um passado histórico de Portugal justamente para fazer uma crítica da
ditadura salazarista, por isso fala sobre a tirania do domínio filipino, tendo
em vista que a peça foi escrita em 1969.
PALAVRAS-CHAVE: ENCOBERTO, HISTÓRIA, LITERATURA. PORTUGAL
PALAVRAS-CHAVE: ENCOBERTO, HISTÓRIA, LITERATURA. PORTUGAL
ABSTRACT
This is a study about the comedy O
Encoberto, by Natalia Correia, such play that was forbidden during the dictatorship
and fascism in Portugal because it is a confrontation between fiction and
history, or better than this, to create fictitious characters and to cross them
with the real characters.
In its first part, the “Introduction”, this study shows the influence of
great names of the Portuguese Literature, as Almeida Garrett and Alexandre
Herculano, upon Natalia Correia, and it makes a comparison between the age of
Felipe kingdom in Portugal ,
in the 16th century, and the Salazar dictatorship, in the 20th
century.
In the chapter “The confrontation between fiction and history”, they are
presented facts and real characters that helped the author to write the play O Encoberto. In the chapter “The
structure of the text”, they are presented the three parts of the play and the
resources that was used by the author as the “didascalia” and the
“metalanguage”, this is what takes us to remember the paliata comedy of the 3rd
century before Christ. In the chapter “The symbology of the characters speeches”,
there is the presence of the chorus as a oracle; the speech of the characters,
mainly the popular speeches, are involved on a symbolism of discontentment and
dissatisfaction and the ambiguities and ironies used by the author when she
tries to approach that speeches to reality.
We can notice that Natalia tells about a historic past in Portugal
only for to criticize the Salazar dictatorship, so she speaks about the
despotism during the Felipe kingdom, remembering that the play was written in
1969.
KEY-WORDS: ENCOBERTO, HISTÓRIA, LITERATURA. PORTUGAL
KEY-WORDS: ENCOBERTO, HISTÓRIA, LITERATURA. PORTUGAL
I
– Introdução
A peça O encoberto, de Natália Correia, se
passa no início do século XVI, no período do domínio filipino em Portugal
devido ao desaparecimento de D. Sebastião na Batalha de Alcácer Quibir. Seu
corpo nunca foi encontrado e, sendo assim, ficou no imaginário popular a
esperança do retorno do rei português.
Baseada num fato histórico a peça aborda o aparecimento em Veneza de um
impostor dizendo ser o próprio D. Sebastião. Em vários períodos da Literatura
Portuguesa, podemos encontrar inúmeros exemplos de anacronismos onde os autores
vão buscar questões de sua época no passado histórico de Portugal.
No
século dezenove Almeida Garrett abordou em O Arco de Sant’Ana o cristianismo beato e
opressor de D. Miguel através da figura do Bispo da cidade do Porto na Idade
Média e D. Pedro IV (D. Pedro I no Brasil), que seria o símbolo da liberdade
através da figura de D. Pedro I, que liberta o povo das arbitrariedades do
bispo. Em Frei Luís de Sousa, Garrett critica a ditadura de
Costa Cabral retornando ao século dezessete através do período do domínio
filipino logo após o desaparecimento do rei D. Sebastião.
Assim
como Almeida Garrett e Herculano, somente que em pleno século vinte, Natália
Correia, como Garrett, retorna ao passado de Portugal para abordar as questões
de seu tempo. Devemos lembrar que O
encoberto foi publicado em 1969 em plena ditadura salazarista que só teve
fim cinco anos depois com a Revolução dos Cravos e nada melhor que retornar ao
período do domínio filipino e um possível retorno do rei D. Sebastião para fazer uma alegoria do fim
da repressão e da esperança de tempos melhores respectivamente.
A
comédia O Encoberto, de Natália
Correia, faz uma abordagem do período de domínio filipino em Portugal e o mito
de D. Sebastião de uma forma bem diferente da convencional.
A
designação d’O Encoberto se baseia na esperança messiânica de que um dia o rei
desaparecido, num dia de nevoeiro, voltaria a Portugal para salvar do domínio
dos tiranos espanhóis o seu povo, que espera de forma omissa, e essa ilusão que
é a composição do sebastianismo.
A
autora consegue desmistificar o mito sebástico de uma forma muito bem humorada.
II – O cruzamento entre ficção e
história
Levando
a bordo El-Rei D. Sebastião,
E
erguendo como um nome, alto pendão
Do
império,
Foi-se
a última nau, ao sol aziago
Erma, e
entre choros de ânsia e de pressago
Mistério.
(...)
FERNANDO PESSOA
Um
fato marcante neste texto de Natália Correia é a mistura entre o real e a
ficção, pois na peça transitam ao mesmo tempo personagens históricas e
fictícias, inclusive personagens cristãs, evidenciando claramente a
intertextualidade do mito sebastianista e do cristianismo.
A
crença messiânica de origem popular denominada Sebastianismo que habitava o
imaginário do povo português teve como origem o desaparecimento do rei D.
Sebastião na Batalha de Alcácer Quibir em Marrocos no ano de 1578. Como não
deixara herdeiros, o trono português foi dominado pela coroa espanhola entre
1580 e 1640 marcando a decadência de Portugal. O corpo de D. Sebastião nunca
foi encontrado e isso alimentava a esperança popular de que D. Sebastião
tivesse sobrevivido e voltaria para reassumir seu trono e que livrasse seu povo
das garras da águia castelhana. A figura do rei D. Sebastião foi associada à
figura de uma espécie de messias, de um salvador que reapareceria para que
junto com ele Portugal pudesse renascer.
O
Sebastianismo é considerado por muitos como o resultado de um povo sem
independência política e sem identidade, esperançoso por dias melhores através
de uma figura mítica, e essa falta de identidade é típica de povos dominados e
oprimidos tanto no domínio filipino entre os séculos dezesseis e dezessete,
quando na ditadura salazarista na década de sessenta, em pleno século vinte,
época em que Natália Correia
escreveu esta peça.
O
tema de O Encoberto é baseado em
fatos históricos que aconteceram no período da dominação estrangeira em
Portugal onde vários impostores (historicamente quatro) apareceram dizendo ser
o próprio rei D. Sebastião. Neste caso Natália Correia se baseia mais
propriamente no impostor que apareceu em Veneza.
Segundo
Jacqueline Hermann esse último impostor de Veneza nem sequer falava português:
Por mais que
vinte anos tivessem se passado, pois D. Sebastião tinha 24 anos quando foi
derrotado em Alcácer
Quibir , D. Inigo
achava absolutamente impossível que tivesse esquecido completamente sua língua
materna. [1]
Bonami,
personagem principal, aparece logo no começo do primeiro ato em
Corte-Contarina, um bairro miserável da Veneza do século XVI, representando com
Floriana e sua trupe o rei desaparecido para vagabundos e maltrapilhos onde acaba
interagindo durante a apresentação e sendo convencido por D. João de Castro de
que era o próprio rei desaparecido e Bonami acabou incorporando o personagem.
Há
logo no início da peça uma personagem chamada D. João de Castro que aparece
acreditando que Bonami, o ator que interpreta D. Sebastião, é de fato o rei tão
esperado.
D.
João de Castro é um personagem real e foi considerado o patrono do
sebastianismo. Importante fidalgo, D. João de Castro era filho de Álvaro de
Castro, um dos principais aliados de D. Sebastião, e tinha a obstinação de
seguir os passos do rei desaparecido escrevendo vários textos em que pregava o
retorno de D. Sebastião sendo que apenas dois deles foram editados em Paris no
ano de 1602, sendo provavelmente os primeiros textos messiânicos que abordavam
a figura do rei desaparecido.
O
fidalgo D. João de Castro cuidou pessoalmente do caso do possível aparecimento
do rei D. Sebastião em Veneza, procurando averiguar a legitimidade desse fato.
Episódio histórico este que inspirou Natália Correia para tema da peça O Encoberto.
Segundo
Jacqueline Hermann:
Alguns
acontecimentos simultâneos devem ter contribuído para que D. João de Castro
reforçasse suas convicções e esperanças na volta de D. Sebastião. A paz entre
França e Espanha, assinada em Vervins em 2 de maio de 1598, depois de várias
décadas de conflito entre França e os Habsburgo, punha fim às expectativas de
que os portugueses fossem ajudados por Henrique IV para reconquistar sua
independência. E, neste mesmo ano, D. João de Castro recebeu uma carta de
Antônio de Brito Pimentel, português emigrado residente em Veneza, contando que
um homem aparecera na cidade dizendo ser D. Sebastião, notícia confirmada em
outra correspondência. (...)
Castro
apressou-se em divulgar a notícia, acolhida reservas por seus compatriotas
exilados, e passou a envolver-se diretamente no caso.[2]
Sabe-se
que a notícia do aparecimento de D. Sebastião se espalhou rapidamente e que o
rei da Espanha ordenou que o seu embaixador na Itália apurasse o caso do
aparecimento do suposto rei.
Evidentemente
há um cruzamento entre personagens reais e fictícios. D. João de Castro
contracena com Bonami, que embora seja baseado num caso verídico de um impostor
que realmente existiu, não pode ser considerado exatamente um personagem real
ou histórico. Floriana também representa uma típica atriz de rua e também não
pode ser considerada um personagem real, somente um tipo que realmente existia
naqueles tempos. Junto com Bonami, Floriana, sua suposta namorada que
representa e incorpora Huria, a moura pela qual o rei havia se apaixonado, é a
única personagem pertencente ao povo que recebe um nome, pois o restante é
definido por suas características como por o exemplo “as Catadeiras de piolho”
e “a Mulher do Cabareth”.
Outros
personagens reais contracenam e se confrontam com fictícios como é o caso de
Filipe II, rei da Espanha atormentado pelo possível retorno de D. Sebastião;
Frei Diego, seu confessor e Cristóvão de Moura, considerado pelo povo português
um traidor.
III – A estrutura do texto
E vós, ó bem nascida segurança
Da lusitana antiga liberdade,
E não menos certíssima esperança
De aumento da pequena cristandade;
Vós, ó temos da maura lança,
Maravilha fatal da nossa idade,
Dada ao mundo por Deus (Que todo o
mande,
Pêra do mundo a Deus dar parte grande;
(...)
LUÍS DE CAMÕES
A
peça O encoberto é dividida em três
atos. No primeiro ato algo acontece; no segundo alguma coisa precisa ser feita
e no terceiro algo precisa acontecer, um típico sistema ternário trabalhado
também no cinema. Logo no primeiro ato, aparece um ator representando D.
Sebastião e é convencido a afirmar ser o próprio; no segundo ato, a corte
espanhola precisa desmascarar esse suposto impostor e no terceiro, finalmente
ele é desmascarado.
Quanto
ao tempo temos inicialmente o século dezesseis e ao final o século vinte. O
espaço também nos leva ao meta teatro, pois aparecem Corte-Contarina, o bairro
miserável de Veneza, a corte de D. Filipe, as ruas de Lisboa onde o povo se
manifesta que se revezam com o Purgatório dos Comediantes onde Bonami incorpora
Bonami-Rei.
Ao
se iniciar a história, o público participa interferindo no desenvolvimento da
trama, o que ocorre no texto é uma metalinguagem teatral, ou seja, o teatro
dentro do teatro, assim como foi feito em Hamlet,
somente que com uma proposta bastante diferente.
Na
obra imortal de Shakespeare, quando Hamlet, personagem-título, escreve o texto
para a companhia de teatro, que estava de passagem pelo seu reino, a
representasse tinha a intenção de desmascarar seu tio Cláudio e ter a certeza
absoluta de que aquele era o assassino de seu pai. Em O
Encoberto fica evidente a intenção da autora de abordar
as crenças populares da época sobre o desaparecimento do rei D. Sebastião e o
seu possível retorno.
A
metalingüagem teatral nos serve também para marcar uma didascália, pois ainda
no primeiro ato, a autora nos indica que Bonami irá incorporar D. Sebastião, a
personagem que representa para o povo, realmente acreditando ser o próprio rei
português e que respeitando o arbítrio da personagem, a autora passa a
denominá-la Bonami-Rei.[3]
Quando
falo de didascália, ou seja, denominar sua personagem de Bonami-Rei, é devido
ao fato que a autora anuncia antecipadamente que o ator vai se tornar um
impostor e que causará muita confusão. Outra didascália presente no texto
aparece em forma de cartaz que tem como objetivo determinar o espaço teatral,
pois existem dois espaços, o palco e o bairro. Este tipo de didascália é um
recurso típico do teatro moderno.
Observemos
esta afirmação de Jean-Pierre Ryngaert sobre as disdascálias:
Originalmente, no teatro grego, as didascálias eram destinadas aos
intérpretes. No teatro moderno, em que falamos de indicações cênicas, trata-se
dos textos que não se destinam a ser pronunciados no palco, mas que ajudam o
leitor a compreender e a imaginar a ação e as personagens.[4]
Quanto
às personagens é importante observarmos que quando se refere a Portugal se usa
o adjetivo “Dom”, e ao se referir à Espanha se utiliza apenas os nomes
próprios. O povo, com algumas exceções como é o caso de Floriana, não é
representado por nomes e sim por suas atitudes.
A
peça apresenta características de uma comédia a começar pelo título, pois “O
encoberto” seria a denominação do reaparecimento do rei numa noite nebulosa, o
símbolo da esperança. O título é uma ironia porque na verdade se trata de um
impostor e não da figura mítica do rei D. Sebastião que retorna para salvar seu
povo.
Observamos
que Natália Correia fez uma brincadeira com um mito, podemos afirmar que o
texto tem a estrutura de uma comédia do tipo, ou seja, a comédia paliata que
surgiu no século III a.C. Sendo assim, o próprio título fortalece essa
característica, pois se a tragédia geralmente tem como título o nome de seus
heróis trágicos, na comédia temos quase sempre como título alguma
característica da personagem principal.
Segundo
Jean-Pierre Ryngaert:
Os títulos
das comédias são um pouco mais eloqüentes. Quando se referem a um “tipo” (O
avarento) ou a uma condição social, adjetivos podem esclarecê-los: O burguês
fidalgo, O médico à força. O título possui em si próprio uma dinâmica, um embrião de
narrativa. (...) Por vezes o título designa ironicamente um perfeito desconhecido como um herói
trágico: Turcaret, O senhor Pourceaugnac , apelando assim à cultura teatral do
espectador. [5]
Como
podemos verificar na citação acima de Ryngaert, o título O Encoberto pode ser encarado como uma espécie de ironia, uma
sátira sobre um suposto herói que ressurgiria para salvar o seu povo da tirania
hispânica e que de fato nunca apareceria de verdade a não ser na pele de
impostores como esse abordado na peça de Natália Correia.
Segundo Aristóteles a comédia é a [6],
no caso de Bonami, seu vício e sua tara é a sua arte de representar para sua
platéia e acreditar que é a personagem.
Embora
a peça apresente características de comédia paliata, onde ocorre o jogo de uma
confusão de identidades para instaurar o humor, ainda no primeiro ato aparece
algumas falas do povo que ao mesmo tempo representam um coro, pois o coro deve
.[7]
como um oráculo que representa a vontade e o pensamento do povo português.
IV – A simbologia e o discurso dos personagens
Anteriormente
falamos sobre a fala do povo que representa um coro e ao mesmo tempo um oráculo
onde as vozes dos populares declamam angústias e aspirações suas como podemos
perceber neste trecho da peça onde a população de Lisboa vibra com o suposto
regresso de D. Sebastião e canta no escuro a trova de um profeta:
Vejo vir o Encoberto
que há-de expulsar os tiranos.
Portugal será a floresta
de forcas de castelhanos.[8]
Um pouco mais adiante aparecem em cena mulheres três
mulheres andrajosas que catam piolho da cabeça de crianças imundas. Estas três
catadeiras representam na verdade a voz da população mais pobre, mais oprimida,
um típico anacronismo da época que Natália Correia escreveu a peça como podemos
observar na fala destas três personagens:
É da mais aconselhável
prudência.
Que o pensar
de cada seja
Proporcional
à sua competência
Para fortuna
neste mundo fazer.
Mas esta
harmoniosa ciência
Que é o
segredo de uma livre sociedade
Onde o magro
deixa o gordo engordar
E o gordo
deixa o magro emagrecer,
Não pode ser
o manual da felicidade
Da mãe que
tem filhos piolhosos.
Enquanto a
cabeça destas crianças limpamos,
O crânio
enchemos de pensamentos ociosos
Que do
infeliz azedam a existência.
Ai de nós! Ai
de nós! Os parasitas!
Que não nos
deixam ter ilusões demonstram
Que o verdugo
continuará a matar
E o insensato
a escrever no peito
A obscena
palavra liberdade
E a dizer
para o verdugo: aponta!
E que nós
continuaremos a catar
A cabeça dos
nossos filhos fedorentos
Quer se chame
Filipe ou Sebastião
O rei para quem filhos fizemos.[9]
A
fala destas três mulheres representa a população miserável que sustenta os
luxos dos ricos, os parasitas que são associados aos piolhos das crianças, e deixam
o povo cada vez mais pobre e de que sempre será súdito de um rei, seja sob
domínio espanhol ou português. Como podemos perceber as catadeiras reproduzem e
comentam as agruras do povo dominado, muito atual não só em Portugal na década
de 60, época em que Natália Correia
escreveu esta peça, como nos dias de hoje.
Ainda
no primeiro ato de O Encoberto num
diálogo de Felipe II e Frei Diego, seu confessor, fica claro o pensamento
hispânico de que Portugal pertence à Espanha por natureza, pois para os
dominadores a Península Ibérica é, pela própria criação da natureza, um único
bloco.
O
pensamento de unificação da Península é reforçado logo a seguir num outro
diálogo por Cristóvão de Moura ao ser questionado pelo rei hispânico sobre a
sua traição ao povo português, engrandecendo o reino da Espanha e chamando
Portugal de mesquinha nacionalidade.
Logo
a seguir percebemos a preocupação de Filipe II com o aparecimento do suposto
rei, pois sabia do perigo que este proporcionaria mesmo que fosse um impostor
que ainda no diálogo com Cristóvão de Moura, o vice-rei de Portugal deixa bem
claro que tem a consciência de que o povo colocaria um impostor no trono português
somente para derrubar o domínio estrangeiro.
(...)
Beijo os vossos pés dos quais espero a bondade de esmagarem a cabeça destas
víboras nacionalistas que, para furarem os olhos da águia espanhola, não
hesitarão em sentar no trono de Portugal um charlatão.[10]
No
segundo ato, Bonami está preso e é pressionado por D. João de Castro, que no
início da peça incita Bonami a afirmar que é D. Sebastião, para que confesse
que é um impostor, pois se for executado afirmando ser o rei desaparecido,
morrerá junto com ele a esperança do povo da liberdade e da independência como
podemos observar nesta fala de D. João de Castro:
D. JOÃO DE CASTRO
Que
sobreviva a esperança no regresso do Rei Encoberto. Se morreres como D.
Sebastião contigo se extingue toda a miragem de liberdade para este povo.
Incrível e intemporal, esse rei de lenda é para os oprimidos a sensação de um
grito por dar.[11]
O
povo o aclama e os nobres querem sua cabeça, mas à medida que os burburinhos de
revolta popular vão se intensificando ameaçando seus privilégios, os
representantes da nobreza mudam o tom de seus discursos e se voltam contra o
vice-rei Cristóvão de Moura de traidor, de lacaio do estrangeiro como podemos
observar neste diálogo entre Cristóvão de Moura e os nobres:
CRISTÓVÃO DE MOURA
Esse homem não
é rei coisa nenhuma. É um vigarista.
CONDESSA
Tu é que nos
saíste um bom vigarista.
MARQUÊS
És um lacaio
do tirano estrangeiro. Não podemos acreditar numa palavra do que dizes.
DUQUE
Cada minuto
de clausura dessa pobre vítima da tua estupidez é um ataque à liberdade de
sermos nobres.
CONDESSA
Se não
soltares imediatamente o soberano dos portugueses, teremos de te considerar o
inimigo público número um da nobreza.[12]
Tanto
ricos quanto pobres acreditam no retorno do rei. A rebelião popular chega a tal
ponto que o Carrasco tem medo de torturá-lo, o Marquês pede em nome da nobreza para
colocá-lo em liberdade, banqueiros, padres, padeiros, cozinheiras e até
prostitutas ameaçam interromper suas atividades caso o suposto rei não fosse
libertado.
No
seu julgamento, Floriana confirma que Bonami não passa de um ator, mas logo
incorpora Huria, a moura, e se refere ao mesmo como se fosse o próprio D.
Sebastião. Novamente ocorre o metateatro onde o personagem representa um
personagem e contracena com outro personagem.
Como
o carrasco se recusa torturar Bonami, temendo que o ele seja mesmo D.
Sebastião, Cristóvão de Moura o tortura e durante seu martírio, ora Bonami diz
ser somente um ator, ora afirma ser mesmo o rei D. Sebastião.
D.
Filipe quer que Bonami seja executado com todos acreditando que ele realmente
seja D. Sebastião, pois junto com ele morreria a esperança do povo,
[13]
e se o prisioneiro morrer como impostor, D. Sebastião continuará vivo na
imaginação do povo.
A
ficção e os fatos históricos se aproximam e se cruzam cada vez mais à medida do
desencadeamento do texto. Há citações históricas no decorrer da peça e
ocorrendo também discursos míticos e teatrais onde o tempo verbal aproxima o
histórico do atual. O texto se passa todo no século XVI, mas já ao final chega
aos nossos dias atuais.
Seguindo
a linha dessa ironia, o texto tem uma certa ambiguidade à medida que trabalha
com o tempo real, que é o tempo da representação e o tempo abstrato que é
puramente imaginário, aparecem também partes em forma de poesia, evidenciando
ainda mais o tom irônico do texto.
Em
O encoberto as personagens têm duas
funções bastante distintas: o papel dentro da peça e a individualidade da
personagem como Bonami e Bonami-Rei. Percebemos claramente que o ator incorpora
a personagem até o momento do clímax quando precisa decidir a questão da
guerra. Bonami então se conscientiza de que não tem esse poder de decisão e
confessa ser apenas um ator.
Ocorre
uma associação do salvador tido como um impostor na figura de mártir, uma
alusão às avessas ao mito do Cristianismo, da crucificação. Bonami está
amarrado a um pelourinho, onde no alto tem a inscrição “D. Sebastião, Rei dos
Portugueses” servindo de chacota para o povo. Digo que é o mito da crucificação
às avessas, porque ao contrário de Jesus Cristo, Bonami ou Bonami-Rei diz que o
seu reino é deste mundo.
No
final da peça depois que Bonami coloca a cabeça no cepo para ser cortada pelo
carrasco, o jogo de cena, com a didascália, é totalmente mudado do século
dezesseis para o século vinte onde as pessoas vestem como na atualidade (século
vinte no caso), numa simbologia de que o mito do herói está em todas as épocas
e em todos os lugares.
V – Conclusão
O
texto de Natália Correia é repleto de simbologias, como por exemplo, o próprio
nome do protagonista, “Bonami”, que em francês significa “bom amigo”, podemos
afirmar que esse nome é o símbolo da esperança de uma vida nova, a esperança de
novos tempos, a salvação e não deixa de ser uma ironia, pois o mesmo é um
impostor, não um impostor como Tartufo,
de Moliére que finge ser ter uma virtude para enganar e explorar Orgon, mas um
impostor cujo seu fingimento é sua grande arte, arte esta de fingir executada
com maestria por todo grande ator que, assim como Bonami que acabou se
transformando em Bonami-Rei e teve que chegar ao extremo para exorcizar seu
papel, muitas das vezes não mente, acredita que realmente é aquele personagem
que representa.
A
metalinguagem, o metateatro é de uma visão de um prisma diferente do metateatro
de Shakespeare, já comentado anteriormente, ou então de Luigi Pirandello em Seis personagens à procura de um autor, pois nesta obra estudada, os personagens
Bonami e Bonami-Rei já tem seus autores autor que são Natália Correia e o povo,
respectivamente, este último existente na imaginação popular, símbolo de
liberdade e de dias melhores.
Nesta
obra, Natália Correia nos mostra que não só o Sebastianismo, mas qualquer outro
tipo de mito messiânico
Em
resumo podemos afirmar que em O Encoberto Natália
Correia consegue trabalhar ao mesmo tempo com o mito e a realidade, a vida e a
representação nesta maravilhosa obra escrita e proibida durante o regime
fascista e ditatorial em Portugal onde o passado opressor em que os gordos
emagrecem os ricos se repetiu no presente e, certamente incomodou os ditadores
que se identificaram nesta peça que aborda o domínio filipino e o sebastianismo.
Bibliografia:
1. ARISTÓTELES. Arte poética. São Paulo: Martin Claret,
2004.
2. CORREIA, Natália. O Encoberto. Lisboa: Ed. Afrodite.
3. DAVID,
Sérgio Nazar. Paixão e revolução.
Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996.
4. HERMANN,
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das Letras, 1998.
5. MALEVAL, Maria do Amparo Tavares
(Org.) Atualizações da Idade Média.
Rio de Janeiro: Editora Agora da
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6. RYNGAERT, Jean-Pierre. Introdução à análise do teatro. São Paulo: Martins
Fontes,
1995.
7. SAMUEL, Roger (Org.). Manual
de teoria literária. Petrópolis: Vozes, 1992.
[1] HERMANN,
Jacqueline. No reino do desejado: a construção do Sebastianismo em Portugal (séculos XV e XVII). São
Paulo: Cia das Letras, 1998.
[2] Idem. p.
194.
[3] CORREIA,
Natália. O Encoberto. Lisboa: Ed.
Afrodite. p. 25.
[4] RYNGAERT,
Jean-Pierre. Tentativa de descrição.
In: ----. Introdução à análise do teatro. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
p. 44.
[5] Idem. p.
36-37.
[6]
ARISTÓTELES. Arte poética. São
Paulo: Martin Claret, 2004. p.33.
[7] Idem.
p.68.
[8] Op. Cit.
nota 3. p. 38.
[9] Idem. p.
40.
[10] Idem.
p. 36.
[11] Idem.
p. 84.
[12] Idem.
p. 79-80.
[13] Idem.
p. 108.
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