quinta-feira, 30 de abril de 2015

SONETO PARA A MENINA DO IMPERATOR VI


Sou teu admirador,
Tens beleza e simpatia,
Presença que contagia,
Tão bela como uma flor.


Escrevo-te com ardor,
Esta simples poesia,
Com lirismo e primazia,
Com carinho e com louvor.


Bate forte o coração
Só de ver teu rosto lindo,
Com respeito e devoção,


Algo em mim que vem surgindo,
Inexplicável emoção,
O meu "eu" fica sorrindo.

(Jorge Eduardo Magalhães)

quarta-feira, 29 de abril de 2015

ARTIGO - O EXERCÍCIO DA RELIGIÃO E O COMPORTAMENTO HUMANO NO CONTO “ENTRE SANTOS”, DE MACHADO DE ASSIS





O EXERCÍCIO DA RELIGIÃO E O COMPORTAMENTO HUMANO NO CONTO “ENTRE SANTOS”, DE MACHADO DE ASSIS

 Por:

Jorge Eduardo Magalhães 




Resumo: Este trabalho visa enfocar o sonho, a alucinação e o devaneio na obra de Machado de Assis, trabalhando especificamente com o conto “Entre santos”. Será feita uma análise do conto “Entre Santos”, cujo narrador-personagem, um padre velho conta que viu as imagens dos santos em tamanho de gente conversando sobre o comportamento de seus fiéis, há muitos anos atrás, quando ainda era capelão de São Francisco de Paula. No conto estudado será destacada a utilização feita por Machado de Assis do sonho, da alucinação e do tempo remoto como recurso para pôr em duvida à versão do narrador e também para se sentir mais à vontade ao fazer sua crítica ao exercício da religião. Será feita uma análise do conto “Entre Santos”, cujo narrador-personagem, um padre velho conta que viu as imagens dos santos em tamanho de gente conversando sobre o comportamento de seus fiéis, há muitos anos atrás, quando ainda era capelão de São Francisco de Paula. No conto estudado, será destacada a utilização feita por Machado de Assis do sonho, da alucinação e do tempo remoto como recurso para pôr em duvida à versão do narrador e também para se sentir mais à vontade ao fazer sua crítica ao exercício da religião.

Palavras-chave: Religião, Devaneio, Hipocrisia, Machado de Assis, Falsidade


ABSTRACT: This work aims to focus on the dream, hallucination and reverie in the work of Machado de Assis, working specifically with the short story "Among the saints." An analysis of the short story "Between Santos" will be made, whose narrator-character, an old priest who has seen the images of the saints in size people talking about the behavior of the faithful, many years ago, when he was chaplain of St. Francis de Paula. The story will be highlighted studied the use made by Machado de Assis's dream, hallucination and remote time as a resource to put in doubt the version of the narrator and also to feel more at ease when making his critique of the exercise of religion. An analysis of the short story "Between Santos" will be made, whose narrator-character, an old priest who has seen the images of the saints in size people talking about the behavior of the faithful, many years ago, when he was chaplain of St. Francis de Paula. In the tale studied, the use made by Machado de Assis's dream, hallucination and remote time as a resource to put in doubt the version of the narrator and also to feel more at ease when making his critique of the exercise of religion will be highlighted.
Key-words: Religião, Devaneio, Hipocrisia, Machado de Assis, Falsidade
 

Texto: O conto “Entre santos”, de Machado de Assis, possui um narrador em primeira pessoa e outro quase imperceptível em primeira pessoa: “Quando eu era capelão de S. Francisco de Paula (contava um padre velho) aconteceu-me uma aventura extraordinária”.[1]
O primeiro e predominante narrador conta um fantástico acontecimento de muito tempo atrás, sendo o tempo remoto fortalecido pela observação em parênteses do narrador em terceira pessoa, sem contar também com o relato dos santos.
O relato do padre em forma de sonho, alucinação, junto com o número de anos decorridos, questiona a credibilidade do acontecimento e provavelmente Machado de Assis também utiliza este recurso do sonho e do diálogo dos santos para não ser direto e se sentir mais à vontade para fazer suas severas críticas sobre o comportamento da humanidade no âmbito da religião e da sociedade em geral.
Segundo Antônio Cândido:
A sua técnica consiste essencialmente em sugerir coisas mais tremendas da maneira mais cândida (como os ironistas do século XVIII); ou em estabelecer um contraste entre a normalidade social dos fatos e a sua anormalidade essencial, ou em sugerir, sob a aparência do contrário, que o ato excepcional é normal e anormal seria o ato corriqueiro. Aí está o motivo de sua modernidade apesar de seu arcaísmo da superfície.[2]

Analisando por outro ângulo, Machado de Assis quase nunca era direto e raramente era claro, óbvio e objetivo em seus textos, usando constantemente recursos diversos, como, por exemplo, no conto “O espelho”, em que o autor também usa a alucinação e os vários anos passados, para questionar a versão do acontecido, o narrador em primeira pessoa e os vários anos do fato acontecido. O narrador de “O espelho” aparece em primeira pessoa e relata um fato ocorrido há muitos anos passados quando foi nomeado alferes e viu sua imagem distorcida no espelho, ao ficar sozinho no sítio de uma tia, tendo que colocar a farda para se reconhecer, é o que o narrador chama da “alma de dentro para fora”. A alucinação do narrador-personagem é um recurso machadiano para explicitar a coisificação do homem que se reconhece através do cargo que exerce na sociedade. Uma característica muito comum nas personagens de Machado de Assis é a necessidade de serem veneradas para ter o domínio.
O relato a seguir é do próprio Jacobina, um homem entre quarenta e quarenta e cinco anos, narrador-personagem do conto “O espelho”: “Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da guarda nacional. Não imaginam o acontecimento que foi isto em nossa casa.”[3]
O narrador em primeira pessoa e o tempo remoto são usados por Machado de Assis tanto em contos como “Entre santos” e “O espelho”, para narrar e justificar o fantástico, quanto em romances como Dom Casmurro, para justificar e questionar paranóias como, por exemplo, o ciúme; ou seja, não se tem certeza até que ponto a versão do narrador é verdadeira, fazendo com que o leitor o tempo todo desconfie do mesmo.
Segundo Ronaldes de Melo e Souza afirma que o narrador machadiano é um fingidor, porque a confuta o estatuto tradicional do narrador que submete ao leitor ao domínio de sua autoridade e, sobretudo, porque desempenha o papel do ator que representa múltiplos papéis.[4]
No caso de “Entre santos”, por exemplo, com certeza o leitor fará a si mesmo as seguintes perguntas: Será que o padre está dizendo a verdade? Ele não estaria exagerando? A idade do narrador e o tempo em que o fato havia acontecido não fariam com que elese confundisse? Não teria sido aquilo tudo um simples sonho ou alucinação e ele, devido à idade, não teria achado que fosse realidade?
Observe-se esta afirmação de Antônio Cândido:
Outro problema que surge com freqüência na obra de Machado de Assis é o da relação entre o fato real e o fato imaginado que será um dos eixos do grande romance de Marcel Proust, e que ambos analisam principalmente com relação ao ciúme. A mesma reversibilidade entre a razão e a loucura que torna impossível demarcar as fronteiras e, portanto, defini-las de modo satisfatório, existe entre o que aconteceu e o que pensamos que aconteceu.[5]

Conforme foi visto, a dúvida em relação ao que aconteceu e ao que pode ter acontecido é um questionamento marcante em toda a obra de Machado de Assis e a forma em que o conto “Entre santos” é narrado tem como objetivo não só questionar o fato acontecido como também livrar o autor da crítica direta ao exercício da religião, crítica esta que saiu da boca dos próprios santos.
Segundo o padre, personagem-narrador, em sua visão na igreja, São José demonstrou todo o seu descontentamento e descrédito em relação aos homens, mas durante o diálogo das imagens que haviam tomado forma humana, São Francisco de Sales faz a sua defesa da humanidade através de Sales, seu devoto.
Sales, que tem o mesmo nome de seu santo padroeiro, é um homem tão avarento que alforria sua escrava depois de morta só para não ter a responsabilidade de arcar com as despesas do enterro.
Sua avareza é tão grande que vive e come mal, e quando abre o armário em que guarda todo o seu dinheiro, de noite dorme mal.
Apesar desse enorme defeito, Sales pede desesperado ao seu padroeiro que cure a sua mulher, desenganada pelos médicos, de uma erisipela que cada vez se agrava mais. Embora as pessoas digam que ele está com medo que a mulher morra já calculando os gastos do enterro, Sales realmente ama a esposa e o enorme medo de perdê-la é realmente por amor.
É do próprio S. Francisco de Sales, santo padroeiro do avarento, tais palavras em defesa de seu devoto: “Não te espante, Miguel; naquele muro aspérrimo brotou uma flor descorada e sem cheiro, mas flor. A botânica sentimental tem dessas anomalias. Sales ama a esposa; está abatido e desvairado com a idéia de a perder. (...)”[6]
A ambigüidade, ou seja, os dois lados da moeda do comportamento humano estão presentes no texto através de Sales, pois, segundo o próprio santo “naquele muro aspérrimo brotou uma flor, pois apesar de sua avareza e mesquinhez”, Sales realmente amava a esposa e foi desesperado pedir com toda a sinceridade que o santo salvasse sua mulher.
O comportamento humano, simbolizado no conto por Sales, em geral é cheio de ambigüidades e contrastes, onde estão incluídos o bem e o mal, o amor verdadeiro e a avareza, como o mostra “Entre santos”.
São os dois lados da moeda: o primeiro se mostra no frio mundo das aparências e da sobrevivência, e o outro através dos sentimentos. É na igreja diante do altar que Sales tira a máscara e mostra sua verdadeira face, deixando quase toda a sua mesquinhez do lado de fora.
Segundo Alfredo Bosi:
À medida que cresce em Machado a suspeita que o engano é necessidade, de que a aparência funciona essencialmente como essência, não só na vida pública mas como no segredo da alma, a sua narração se vê impelida de assumir uma perspectiva mais distanciada e, ao mesmo tempo, mais problemática, mais amante do contraste. Rompe-se por dentro o ponto de vista ainda oscilante dos primeiros contos. A ambigüidade do seu eu em situação impõe-se como uma estrutura objetiva e insuperável (...).[7]

Conforme já foi dito anteriormente, Sales estava de coração aberto diante de seu santo, e deixou do lado de fora da igreja quase todos os seus vícios, mas sua visão do mundo capitalista prevaleceu no momento de desespero, quando fez a sua promessa, o que veremos mais detalhadamente a seguir.
Sales é o exemplo claro dos dois lados da moeda.
Durante o diálogo entre os santos, São José relata o caso de uma adúltera que foi à igreja tentando buscar forças para se afastar do namorado e que foi progressivamente distanciando seu pensamento no decorrer da oração e tendo a sua fé esfriada até sair da igreja sem pedir nada, dando a entender que muito breve tornaria a cair nos braços de seu amor, provavelmente usando a igreja apenas como um desencargo de consciência, já que, embora não resistisse à tentação, deveria achar o adultério condenável; e sendo assim, voltaria a praticar seus velhos hábitos.
O texto não esclarece se o motivo do adultério é o amor ou simplesmente o prazer; percebe-se apenas que São José não condena os seus atos extraconjugais e sim o uso da igreja, da religião. Mesmo porque o casamento do século dezenove era algo obrigatório, imposto pela sociedade.
O casamento, o adultério e o comportamento da família patriarcal, são temas sempre retratados nas obras de Machado de Assis, onde, conseqüentemente, também aparece a hipocrisia.
Observe-se esta afirmação de Kátia Muricy, que, apesar de falar de dois romances, pode ser aproveitada, mesmo que de forma implícita, para o conto “Entre santos:
O casamento é o tema favorito nos romances de Machado de Assis. Em suas diversas modulações – noivados rompimentos, adultérios, viuvez – o casamento é como maternidade aquela complicação do natural com o social que de Ressurreição (1872) e Memorial de Aires (1908), preocupa o narrador, define os personagens e determina a ação. São quase sempre as incursões do amor na placidez da família que lhe permitem desnudar, na análise dos conflitos suscitados, tanto as conveniências da moral tradicional do patriarcalismo, quanto os interesses da nova moral burguesa relativa ao amor e ao casamento, que, gradativamente, ao longo do século XIX, impuseram-se na sociedade brasileira.[8]

O comportamento e a hipocrisia da sociedade aparecem constantemente nos textos de Machado de Assis, de forma crítica. Sendo assim, o santo não condena em momento algum a atitude da adúltera, pois o texto não esclarece como era o seu casamento nem o seu relacionamento familiar. Não poderia o seu casamento ser apenas algo imposto pela sociedade?
Provavelmente, a adúltera foi à igreja tentar buscar forças para se afastar do namorado não porque ficasse com remorsos ou mesmo com sentimentos de culpa em relação ao seu marido, mas porque no fundo sabia que era algo que a sociedade condenava.
A maior crítica de São José não é ao adultério por si só, mas ao modo de utilização da igreja e do catolicismo simplesmente como um meio de limpar a sua consciência, ou de purificação, para, depois de receber a graça do perdão, retornar ao seu antigo amor.
Voltando ao avarento Sales que, segundo seu próprio padroeiro São Francisco de Sales, realmente amava a esposa e estava apavorado com a possibilidade de que ela morresse, pediu desesperado que a salvasse. Para obter a graça, Sales ofereceu em troca uma perna de cera; a oferta não foi feita como lembrança e gratidão; mas sim para forçar a graça oferendo algo em troca, ou seja, através do lucro.
O conceito capitalista de Sales em relação a tudo, inclusive à religião, é uma crítica de toda a sociedade oitocentista, comportamento este muito presente na obra de Machado de Assis, onde é muito comum as pessoas pedirem alguma benção oferecendo algo em troca aos seus padroeiros, inclusive colocar o filho no seminário, que é o caso do romance Dom Casmurro. Este, além de abordar o exercício da religião, aborda também o comportamento da sociedade em geral, além de questionar a versão do narrador em primeira pessoa em relação aos fatos acontecidos, ou seja, aquilo que realmente aconteceu e que pode ter acontecido.
Deus e os santos, neste caso, são vistos também como grandes capitalistas, banqueiros e avaliadores que cobram seus preços para atenderem ao pedido de seus fiéis, numa sociedade onde o conflito burguês e o valor monetário estão incluídos em todos os patamares da vida.
É de Jonh Gledson esta afirmação:
Portanto, em certo sentido, o cristianismo é o humanitismo de Bento, a doutrina que, reduzindo tudo à mesma moeda – Humanitismo, a metáfora financeira e outras metáforas pelas quais Deus é humanizado – lhe permite levar a cabo operações convincentes, se não definitivamente fraudulentas para justificar sua visão da vida e da própria inocência, e assim, basicamente, o seu egoísmo.[9]

Sales é o exemplo claro da defesa da humanidade por São Francisco, que alega que o homem não é tão mau assim, tendo, como qualquer ser humano, seus defeitos e virtudes; pois, ao mesmo tempo em que ama a esposa, é avarento com os outros e consigo mesmo, e, devido aos seus valores capitalistas, acha que só conseguirá obter a cura do milagre da cura de sua esposa através do lucro da compra e da venda. Talvez nem mesmo o próprio Sales tenha percebido que essa falha e sua atitude já fossem força do hábito.
É conveniente afirmar que o devaneio, a alucinação do padre velho passado há muitos anos passados é mais de uma das armadilhas do narrador machadiano utilizadas como recurso para confundir e causar dúvida ao leitor quanto à veracidade dos fatos narrados. A visão do padre e os comentários feitos pelas próprias bocas das imagens dos santos é uma forma de deixar o autor numa posição mais confortável para criticar o exercício da religião e a hipocrisia da sociedade do século dezenove de uma forma geral de uma forma bem sutil sem se expor, afinal de contas não é Machado de Assis quem está criticando, mas, sim as imagens numa possível alucinação de um padre contada por ele próprio, muitos anos depois quando este já está uma idade bastante avançada.
A alucinação contada pelo padre narrador em primeira pessoa e testemunha ocular do acontecimento extraordinário que foi o diálogo das imagens na igreja, pode ser encarada como mais um artifício de Machado de Assis para criticar o comportamento humano e o exercício da religião.
A descrença de São João Batista em relação à humanidade, o caso da adúltera narrado por São José e a consequente defesa dos homens feita por São Francisco de Sales, através do comportamento e atitude de seu devoto, constituem uma metáfora do comportamento e dos valores da sociedade não só em relação à prática religiosa, mas também quanto ao comportamento geral de todos os setores da vida.
A ambiguidade, as duas faces do ser humano, estão presentes na narrativa, ambiguidade esta que mostra o lado bom e o lado ruim do homem, ou seja, os dois lados da mesma moeda.
Tanto a forma com que se encara a religião no texto, quanto o comportamento da sociedade, além de serem temas ainda bastantes atuais; pois ambos possuem o mesmo objetivo: a falsidade, a hipocrisia e a obtenção do lucro.

REFERÊNCIAS:

ASSIS, Machado de. Entre santos. In: ----. Várias histórias. São Paulo: Globo, 1977. p.15.

_________________. O espelho. In:----. Antologia machadiana. São Paulo: Lia Editora S/A. p. 317.

BOSI, Alfredo. A máscara e a fenda. In: BOSI, Alfredo (org.). Antologia e estudos. São Paulo: Ática. p. 441.

CÂNDIDO, Antônio. Esquema de Machado de Assis. In: ----. Vários escritos. 3. Ed.  Revista e ampliada. São Paulo: Duas cidades, 1995. p. 27.

 GLEDSON, Jonh. Cristianismo. In: ----. Machado de Assis: ficção e história. Rio de Janeiro: Paz e Terra,   1986. p. 14.

 MURICY, Kátia. Introdução. In:----. A razão cética. Machado de Assis e as questões do seu tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 13.
  
SOUZA, Ronaldes Melo e. O estilo narrativo de Machado de Assis. p. 65.







[1] ASSIS, Machado de. Entre santos. In: ----. Várias histórias. São Paulo: Globo, 1977. p.15.
[2] CÂNDIDO, Antônio. Esquema de Machado de Assis. In: ----. Vários escritos. 3. Ed.  Revista e ampliada. São Paulo: Duas cidades, 1995. p. 27.
[3] ASSIS, Machado. O espelho. In:----. Antologia machadiana. São Paulo: Lia Editora S/A. p. 317.
[4] SOUZA, Ronaldes Melo e. O estilo narrativo de Machado de Assis. p. 65.
[5] Op. Cit. nota 2. p. 30.
[6] Op. Cit. nota 1. p. 20.
[7] BOSI, Alfredo. A máscara e a fenda. In: BOSI, Alfredo (org.). Antologia e estudos. São Paulo: Ática. p. 441.
[8] MURICY, Kátia. Introdução. In:----. A razão cética. Machado de Assis e as questões do seu tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 13.
[9] GLEDSON, Jonh. Cristianismo. In: ----. Machado de Assis: ficção e história. Rio de Janeiro: Paz e Terra,   1986. p. 14. 

segunda-feira, 27 de abril de 2015

ARTIGO - O ENCOBERTO: A COMÉDIA DO IMPOSTOR



O encoberto: a comédia do impostor
Por
Jorge Eduardo Magalhães


RESUMO
Este é um estudo da comédia O Encoberto, de Natália Correia, obra esta que ficou proibida de ser encenada em Portugal durante todo o período fascista e ditatorial por fazer um cruzamento entre a ficção e a história, ou seja, criar personagens fictícios e confrontá-los com personagens reais.
Em sua primeira parte “Introdução”, este estudo mostra a influência de grandes nomes da Literatura Portuguesa, como Almeida Garrett e Alexandre Herculano, sobre a autora Natália Correia, e traça um paralelo entre o período do domínio filipino em Portugal, no séc. XVI e a ditadura salazarista, séc. XX.
No capítulo “O cruzamento entre ficção e história”, são apresentados os fatos e personagens reais que ajudaram a autora a compor a peça O Encoberto. No capítulo “A estrutura do texto”, são apresentadas as três partes da obra e os recursos utilizados pela autora como as didascálias e a metalinguagem, o que faz lembrar a comédia paliata do séc. III a.C. No capítulo “A simbologia do discurso das personagens”, a presença do coro como uma espécie de oráculo; a fala das personangens, principalmente as populares, estão envoltas de toda uma simbologia de descontentamento e insatisfação e o uso de ambiguidades e ironias por parte da autora ao aproximar os discursos da realidade.
Percebemos que Natália fala de um passado histórico de Portugal justamente para fazer uma crítica da ditadura salazarista, por isso fala sobre a tirania do domínio filipino, tendo em vista que a peça foi escrita em 1969.
PALAVRAS-CHAVE: ENCOBERTO,  HISTÓRIA, LITERATURA. PORTUGAL

ABSTRACT
This is a study about the comedy O Encoberto, by Natalia Correia, such play that was forbidden during the dictatorship and fascism in Portugal because it is a confrontation between fiction and history, or better than this, to create fictitious characters and to cross them with the real characters.
In its first part, the “Introduction”, this study shows the influence of great names of the Portuguese Literature, as Almeida Garrett and Alexandre Herculano, upon Natalia Correia, and it makes a comparison between the age of Felipe kingdom in Portugal, in the 16th century, and the Salazar dictatorship, in the 20th century.
In the chapter “The confrontation between fiction and history”, they are presented facts and real characters that helped the author to write the play O Encoberto. In the chapter “The structure of the text”, they are presented the three parts of the play and the resources that was used by the author as the “didascalia” and the “metalanguage”, this is what takes us to remember the paliata comedy of the 3rd century before Christ. In the chapter “The symbology of the characters speeches”, there is the presence of the chorus as a oracle; the speech of the characters, mainly the popular speeches, are involved on a symbolism of discontentment and dissatisfaction and the ambiguities and ironies used by the author when she tries to approach that speeches to reality.
We can notice that Natalia tells about a historic past in Portugal only for to criticize the Salazar dictatorship, so she speaks about the despotism during the Felipe kingdom, remembering that the play was written in 1969.
KEY-WORDS: ENCOBERTO,  HISTÓRIA, LITERATURA. PORTUGAL

I – Introdução
A peça O encoberto, de Natália Correia, se passa no início do século XVI, no período do domínio filipino em Portugal devido ao desaparecimento de D. Sebastião na Batalha de Alcácer Quibir. Seu corpo nunca foi encontrado e, sendo assim, ficou no imaginário popular a esperança do retorno do rei português.  Baseada num fato histórico a peça aborda o aparecimento em Veneza de um impostor dizendo ser o próprio D. Sebastião. Em vários períodos da Literatura Portuguesa, podemos encontrar inúmeros exemplos de anacronismos onde os autores vão buscar questões de sua época no passado histórico de Portugal.
No século dezenove Almeida Garrett abordou em O Arco de Sant’Ana o cristianismo beato e opressor de D. Miguel através da figura do Bispo da cidade do Porto na Idade Média e D. Pedro IV (D. Pedro I no Brasil), que seria o símbolo da liberdade através da figura de D. Pedro I, que liberta o povo das arbitrariedades do bispo. Em Frei Luís de Sousa, Garrett critica a ditadura de Costa Cabral retornando ao século dezessete através do período do domínio filipino logo após o desaparecimento do rei D. Sebastião.
Assim como Almeida Garrett e Herculano, somente que em pleno século vinte, Natália Correia, como Garrett, retorna ao passado de Portugal para abordar as questões de seu tempo. Devemos lembrar que O encoberto foi publicado em 1969 em plena ditadura salazarista que só teve fim cinco anos depois com a Revolução dos Cravos e nada melhor que retornar ao período do domínio filipino e um possível retorno do rei    D. Sebastião para fazer uma alegoria do fim da repressão e da esperança de tempos melhores respectivamente.
A comédia O Encoberto, de Natália Correia, faz uma abordagem do período de domínio filipino em Portugal e o mito de D. Sebastião de uma forma bem diferente da convencional. 
A designação d’O Encoberto se baseia na esperança messiânica de que um dia o rei desaparecido, num dia de nevoeiro, voltaria a Portugal para salvar do domínio dos tiranos espanhóis o seu povo, que espera de forma omissa, e essa ilusão que é a composição do sebastianismo.
A autora consegue desmistificar o mito sebástico de uma forma muito bem humorada.
II – O cruzamento entre ficção e história
Levando a bordo El-Rei D. Sebastião,
E erguendo como um nome, alto pendão
Do império,
Foi-se a última nau, ao sol aziago
Erma, e entre choros de ânsia e de pressago
Mistério.
(...)
FERNANDO PESSOA
Um fato marcante neste texto de Natália Correia é a mistura entre o real e a ficção, pois na peça transitam ao mesmo tempo personagens históricas e fictícias, inclusive personagens cristãs, evidenciando claramente a intertextualidade do mito sebastianista e do cristianismo.
A crença messiânica de origem popular denominada Sebastianismo que habitava o imaginário do povo português teve como origem o desaparecimento do rei D. Sebastião na Batalha de Alcácer Quibir em Marrocos no ano de 1578. Como não deixara herdeiros, o trono português foi dominado pela coroa espanhola entre 1580 e 1640 marcando a decadência de Portugal. O corpo de D. Sebastião nunca foi encontrado e isso alimentava a esperança popular de que D. Sebastião tivesse sobrevivido e voltaria para reassumir seu trono e que livrasse seu povo das garras da águia castelhana. A figura do rei D. Sebastião foi associada à figura de uma espécie de messias, de um salvador que reapareceria para que junto com ele Portugal pudesse renascer.
O Sebastianismo é considerado por muitos como o resultado de um povo sem independência política e sem identidade, esperançoso por dias melhores através de uma figura mítica, e essa falta de identidade é típica de povos dominados e oprimidos tanto no domínio filipino entre os séculos dezesseis e dezessete, quando na ditadura salazarista na década de sessenta, em pleno século vinte, época em que Natália Correia escreveu esta peça.
O tema de O Encoberto é baseado em fatos históricos que aconteceram no período da dominação estrangeira em Portugal onde vários impostores (historicamente quatro) apareceram dizendo ser o próprio rei D. Sebastião. Neste caso Natália Correia se baseia mais propriamente no impostor que apareceu em Veneza.
Segundo Jacqueline Hermann esse último impostor de Veneza nem sequer falava português:
Por mais que vinte anos tivessem se passado, pois D. Sebastião tinha 24 anos quando foi derrotado em Alcácer Quibir,       D. Inigo achava absolutamente impossível que tivesse esquecido completamente sua língua materna. [1]


Bonami, personagem principal, aparece logo no começo do primeiro ato em Corte-Contarina, um bairro miserável da Veneza do século XVI, representando com Floriana e sua trupe o rei desaparecido para vagabundos e maltrapilhos onde acaba interagindo durante a apresentação e sendo convencido por D. João de Castro de que era o próprio rei desaparecido e Bonami acabou incorporando o personagem.
Há logo no início da peça uma personagem chamada D. João de Castro que aparece acreditando que Bonami, o ator que interpreta D. Sebastião, é de fato o rei tão esperado.
D. João de Castro é um personagem real e foi considerado o patrono do sebastianismo. Importante fidalgo, D. João de Castro era filho de Álvaro de Castro, um dos principais aliados de D. Sebastião, e tinha a obstinação de seguir os passos do rei desaparecido escrevendo vários textos em que pregava o retorno de D. Sebastião sendo que apenas dois deles foram editados em Paris no ano de 1602, sendo provavelmente os primeiros textos messiânicos que abordavam a figura do rei desaparecido.
O fidalgo D. João de Castro cuidou pessoalmente do caso do possível aparecimento do rei D. Sebastião em Veneza, procurando averiguar a legitimidade desse fato. Episódio histórico este que inspirou Natália Correia para tema da peça O Encoberto.
Segundo Jacqueline Hermann:
Alguns acontecimentos simultâneos devem ter contribuído para que D. João de Castro reforçasse suas convicções e esperanças na volta de D. Sebastião. A paz entre França e Espanha, assinada em Vervins em 2 de maio de 1598, depois de várias décadas de conflito entre França e os Habsburgo, punha fim às expectativas de que os portugueses fossem ajudados por Henrique IV para reconquistar sua independência. E, neste mesmo ano, D. João de Castro recebeu uma carta de Antônio de Brito Pimentel, português emigrado residente em Veneza, contando que um homem aparecera na cidade dizendo ser D. Sebastião, notícia confirmada em outra correspondência. (...)
Castro apressou-se em divulgar a notícia, acolhida reservas por seus compatriotas exilados, e passou a envolver-se diretamente no caso.[2]

Sabe-se que a notícia do aparecimento de D. Sebastião se espalhou rapidamente e que o rei da Espanha ordenou que o seu embaixador na Itália apurasse o caso do aparecimento do suposto rei.
Evidentemente há um cruzamento entre personagens reais e fictícios. D. João de Castro contracena com Bonami, que embora seja baseado num caso verídico de um impostor que realmente existiu, não pode ser considerado exatamente um personagem real ou histórico. Floriana também representa uma típica atriz de rua e também não pode ser considerada um personagem real, somente um tipo que realmente existia naqueles tempos. Junto com Bonami, Floriana, sua suposta namorada que representa e incorpora Huria, a moura pela qual o rei havia se apaixonado, é a única personagem pertencente ao povo que recebe um nome, pois o restante é definido por suas características como por o exemplo “as Catadeiras de piolho” e “a Mulher do Cabareth”.
Outros personagens reais contracenam e se confrontam com fictícios como é o caso de Filipe II, rei da Espanha atormentado pelo possível retorno de D. Sebastião; Frei Diego, seu confessor e Cristóvão de Moura, considerado pelo povo português um traidor.

III – A estrutura do texto
E vós, ó bem nascida segurança
Da lusitana antiga liberdade,
E não menos certíssima esperança
De aumento da pequena cristandade;
Vós, ó temos da maura lança,
Maravilha fatal da nossa idade,
Dada ao mundo por Deus (Que todo o mande,
Pêra do mundo a Deus dar parte grande;
(...)
LUÍS DE CAMÕES

A peça O encoberto é dividida em três atos. No primeiro ato algo acontece; no segundo alguma coisa precisa ser feita e no terceiro algo precisa acontecer, um típico sistema ternário trabalhado também no cinema. Logo no primeiro ato, aparece um ator representando D. Sebastião e é convencido a afirmar ser o próprio; no segundo ato, a corte espanhola precisa desmascarar esse suposto impostor e no terceiro, finalmente ele é desmascarado.
Quanto ao tempo temos inicialmente o século dezesseis e ao final o século vinte. O espaço também nos leva ao meta teatro, pois aparecem Corte-Contarina, o bairro miserável de Veneza, a corte de D. Filipe, as ruas de Lisboa onde o povo se manifesta que se revezam com o Purgatório dos Comediantes onde Bonami incorpora Bonami-Rei.
Ao se iniciar a história, o público participa interferindo no desenvolvimento da trama, o que ocorre no texto é uma metalinguagem teatral, ou seja, o teatro dentro do teatro, assim como foi feito em Hamlet, somente que com uma proposta bastante diferente.
Na obra imortal de Shakespeare, quando Hamlet, personagem-título, escreve o texto para a companhia de teatro, que estava de passagem pelo seu reino, a representasse tinha a intenção de desmascarar seu tio Cláudio e ter a certeza absoluta de que aquele era o assassino de seu pai. Em O Encoberto fica evidente a intenção da autora de abordar as crenças populares da época sobre o desaparecimento do rei D. Sebastião e o seu possível retorno.
A metalingüagem teatral nos serve também para marcar uma didascália, pois ainda no primeiro ato, a autora nos indica que Bonami irá incorporar D. Sebastião, a personagem que representa para o povo, realmente acreditando ser o próprio rei português e que respeitando o arbítrio da personagem, a autora passa a denominá-la Bonami-Rei.[3]
Quando falo de didascália, ou seja, denominar sua personagem de Bonami-Rei, é devido ao fato que a autora anuncia antecipadamente que o ator vai se tornar um impostor e que causará muita confusão. Outra didascália presente no texto aparece em forma de cartaz que tem como objetivo determinar o espaço teatral, pois existem dois espaços, o palco e o bairro. Este tipo de didascália é um recurso típico do teatro moderno.
Observemos esta afirmação de Jean-Pierre Ryngaert sobre as disdascálias:

Originalmente, no teatro grego, as didascálias eram destinadas aos intérpretes. No teatro moderno, em que falamos de indicações cênicas, trata-se dos textos que não se destinam a ser pronunciados no palco, mas que ajudam o leitor a compreender e a imaginar a ação e as personagens.[4]    

Quanto às personagens é importante observarmos que quando se refere a Portugal se usa o adjetivo “Dom”, e ao se referir à Espanha se utiliza apenas os nomes próprios. O povo, com algumas exceções como é o caso de Floriana, não é representado por nomes e sim por suas atitudes.
A peça apresenta características de uma comédia a começar pelo título, pois “O encoberto” seria a denominação do reaparecimento do rei numa noite nebulosa, o símbolo da esperança. O título é uma ironia porque na verdade se trata de um impostor e não da figura mítica do rei D. Sebastião que retorna para salvar seu povo.
Observamos que Natália Correia fez uma brincadeira com um mito, podemos afirmar que o texto tem a estrutura de uma comédia do tipo, ou seja, a comédia paliata que surgiu no século III a.C. Sendo assim, o próprio título fortalece essa característica, pois se a tragédia geralmente tem como título o nome de seus heróis trágicos, na comédia temos quase sempre como título alguma característica da personagem principal.
Segundo Jean-Pierre Ryngaert:
Os títulos das comédias são um pouco mais eloqüentes. Quando se referem a um “tipo” (O avarento) ou a uma condição social, adjetivos podem esclarecê-los: O burguês fidalgo, O médico à força. O título possui em si  próprio uma dinâmica, um embrião de narrativa. (...) Por vezes o título designa ironicamente  um perfeito desconhecido como um herói trágico: Turcaret, O senhor Pourceaugnac , apelando assim à cultura teatral do espectador. [5]

Como podemos verificar na citação acima de Ryngaert, o título O Encoberto pode ser encarado como uma espécie de ironia, uma sátira sobre um suposto herói que ressurgiria para salvar o seu povo da tirania hispânica e que de fato nunca apareceria de verdade a não ser na pele de impostores como esse abordado na peça de Natália Correia.
Segundo Aristóteles a comédia é a [6], no caso de Bonami, seu vício e sua tara é a sua arte de representar para sua platéia e acreditar que é a personagem.
Embora a peça apresente características de comédia paliata, onde ocorre o jogo de uma confusão de identidades para instaurar o humor, ainda no primeiro ato aparece algumas falas do povo que ao mesmo tempo representam um coro, pois o coro deve .[7] como um oráculo que representa a vontade e o pensamento do povo português.

IV –  A simbologia e o discurso dos personagens
Anteriormente falamos sobre a fala do povo que representa um coro e ao mesmo tempo um oráculo onde as vozes dos populares declamam angústias e aspirações suas como podemos perceber neste trecho da peça onde a população de Lisboa vibra com o suposto regresso de D. Sebastião e canta no escuro a trova de um profeta:

Vejo vir o Encoberto
que há-de expulsar os tiranos.
Portugal será a floresta
de forcas de castelhanos.[8]

Um pouco mais adiante aparecem em cena mulheres três mulheres andrajosas que catam piolho da cabeça de crianças imundas. Estas três catadeiras representam na verdade a voz da população mais pobre, mais oprimida, um típico anacronismo da época que Natália Correia escreveu a peça como podemos observar na fala destas três personagens:
É da mais aconselhável prudência.
Que o pensar de cada seja
Proporcional à sua competência
Para fortuna neste mundo fazer.
Mas esta harmoniosa ciência
Que é o segredo de uma livre sociedade
Onde o magro deixa o gordo engordar
E o gordo deixa o magro emagrecer,
Não pode ser o manual da felicidade
Da mãe que tem filhos piolhosos.
Enquanto a cabeça destas crianças limpamos,
O crânio enchemos de pensamentos ociosos
Que do infeliz azedam a existência.
Ai de nós! Ai de nós! Os parasitas!
Que não nos deixam ter ilusões demonstram
Que o verdugo continuará a matar
E o insensato a escrever no peito
A obscena palavra liberdade
E a dizer para o verdugo: aponta!
E que nós continuaremos a catar
A cabeça dos nossos filhos fedorentos
Quer se chame Filipe ou Sebastião
 O rei para quem filhos fizemos.[9]
                        
A fala destas três mulheres representa a população miserável que sustenta os luxos dos ricos, os parasitas que são associados aos piolhos das crianças, e deixam o povo cada vez mais pobre e de que sempre será súdito de um rei, seja sob domínio espanhol ou português. Como podemos perceber as catadeiras reproduzem e comentam as agruras do povo dominado, muito atual não só em Portugal na década de 60, época em que Natália Correia escreveu esta peça, como nos dias de hoje.
Ainda no primeiro ato de O Encoberto num diálogo de Felipe II e Frei Diego, seu confessor, fica claro o pensamento hispânico de que Portugal pertence à Espanha por natureza, pois para os dominadores a Península Ibérica é, pela própria criação da natureza, um único bloco.
O pensamento de unificação da Península é reforçado logo a seguir num outro diálogo por Cristóvão de Moura ao ser questionado pelo rei hispânico sobre a sua traição ao povo português, engrandecendo o reino da Espanha e chamando Portugal de mesquinha nacionalidade.
Logo a seguir percebemos a preocupação de Filipe II com o aparecimento do suposto rei, pois sabia do perigo que este proporcionaria mesmo que fosse um impostor que ainda no diálogo com Cristóvão de Moura, o vice-rei de Portugal deixa bem claro que tem a consciência de que o povo colocaria um impostor no trono português somente para derrubar o domínio estrangeiro.
(...) Beijo os vossos pés dos quais espero a bondade de esmagarem a cabeça destas víboras nacionalistas que, para furarem os olhos da águia espanhola, não hesitarão em sentar no trono de Portugal um charlatão.[10]
No segundo ato, Bonami está preso e é pressionado por D. João de Castro, que no início da peça incita Bonami a afirmar que é D. Sebastião, para que confesse que é um impostor, pois se for executado afirmando ser o rei desaparecido, morrerá junto com ele a esperança do povo da liberdade e da independência como podemos observar nesta fala de D. João de Castro:
D. JOÃO DE CASTRO
Que sobreviva a esperança no regresso do Rei Encoberto. Se morreres como D. Sebastião contigo se extingue toda a miragem de liberdade para este povo. Incrível e intemporal, esse rei de lenda é para os oprimidos a sensação de um grito por dar.[11]
O povo o aclama e os nobres querem sua cabeça, mas à medida que os burburinhos de revolta popular vão se intensificando ameaçando seus privilégios, os representantes da nobreza mudam o tom de seus discursos e se voltam contra o vice-rei Cristóvão de Moura de traidor, de lacaio do estrangeiro como podemos observar neste diálogo entre Cristóvão de Moura e os nobres:
CRISTÓVÃO DE MOURA
Esse homem não é rei coisa nenhuma. É um vigarista.

CONDESSA
Tu é que nos saíste um bom vigarista.

MARQUÊS
És um lacaio do tirano estrangeiro. Não podemos acreditar numa palavra do que dizes.

DUQUE
Cada minuto de clausura dessa pobre vítima da tua estupidez é um ataque à liberdade de sermos nobres.

CONDESSA
Se não soltares imediatamente o soberano dos portugueses, teremos de te considerar o inimigo público número um da nobreza.[12]

Tanto ricos quanto pobres acreditam no retorno do rei. A rebelião popular chega a tal ponto que o Carrasco tem medo de torturá-lo, o Marquês pede em nome da nobreza para colocá-lo em liberdade, banqueiros, padres, padeiros, cozinheiras e até prostitutas ameaçam interromper suas atividades caso o suposto rei não fosse libertado.
No seu julgamento, Floriana confirma que Bonami não passa de um ator, mas logo incorpora Huria, a moura, e se refere ao mesmo como se fosse o próprio D. Sebastião. Novamente ocorre o metateatro onde o personagem representa um personagem e contracena com outro personagem.
Como o carrasco se recusa torturar Bonami, temendo que o ele seja mesmo D. Sebastião, Cristóvão de Moura o tortura e durante seu martírio, ora Bonami diz ser somente um ator, ora afirma ser mesmo o rei D. Sebastião.
D. Filipe quer que Bonami seja executado com todos acreditando que ele realmente seja D. Sebastião, pois junto com ele morreria a esperança do povo, [13] e se o prisioneiro morrer como impostor, D. Sebastião continuará vivo na imaginação do povo.
A ficção e os fatos históricos se aproximam e se cruzam cada vez mais à medida do desencadeamento do texto. Há citações históricas no decorrer da peça e ocorrendo também discursos míticos e teatrais onde o tempo verbal aproxima o histórico do atual. O texto se passa todo no século XVI, mas já ao final chega aos nossos dias atuais.
Seguindo a linha dessa ironia, o texto tem uma certa ambiguidade à medida que trabalha com o tempo real, que é o tempo da representação e o tempo abstrato que é puramente imaginário, aparecem também partes em forma de poesia, evidenciando ainda mais o tom irônico do texto.
Em O encoberto as personagens têm duas funções bastante distintas: o papel dentro da peça e a individualidade da personagem como Bonami e Bonami-Rei. Percebemos claramente que o ator incorpora a personagem até o momento do clímax quando precisa decidir a questão da guerra. Bonami então se conscientiza de que não tem esse poder de decisão e confessa ser apenas um ator.
Ocorre uma associação do salvador tido como um impostor na figura de mártir, uma alusão às avessas ao mito do Cristianismo, da crucificação. Bonami está amarrado a um pelourinho, onde no alto tem a inscrição “D. Sebastião, Rei dos Portugueses” servindo de chacota para o povo. Digo que é o mito da crucificação às avessas, porque ao contrário de Jesus Cristo, Bonami ou Bonami-Rei diz que o seu reino é deste mundo.
No final da peça depois que Bonami coloca a cabeça no cepo para ser cortada pelo carrasco, o jogo de cena, com a didascália, é totalmente mudado do século dezesseis para o século vinte onde as pessoas vestem como na atualidade (século vinte no caso), numa simbologia de que o mito do herói está em todas as épocas e em todos os lugares.

V – Conclusão
O texto de Natália Correia é repleto de simbologias, como por exemplo, o próprio nome do protagonista, “Bonami”, que em francês significa “bom amigo”, podemos afirmar que esse nome é o símbolo da esperança de uma vida nova, a esperança de novos tempos, a salvação e não deixa de ser uma ironia, pois o mesmo é um impostor, não um impostor como Tartufo, de Moliére que finge ser ter uma virtude para enganar e explorar Orgon, mas um impostor cujo seu fingimento é sua grande arte, arte esta de fingir executada com maestria por todo grande ator que, assim como Bonami que acabou se transformando em Bonami-Rei e teve que chegar ao extremo para exorcizar seu papel, muitas das vezes não mente, acredita que realmente é aquele personagem que representa.
A metalinguagem, o metateatro é de uma visão de um prisma diferente do metateatro de Shakespeare, já comentado anteriormente, ou então de Luigi Pirandello em Seis personagens à procura de um autor, pois nesta obra estudada, os personagens Bonami e Bonami-Rei já tem seus autores autor que são Natália Correia e o povo, respectivamente, este último existente na imaginação popular, símbolo de liberdade e de dias melhores.
Nesta obra, Natália Correia nos mostra que não só o Sebastianismo, mas qualquer outro tipo de mito messiânico
Em resumo podemos afirmar que em O Encoberto Natália Correia consegue trabalhar ao mesmo tempo com o mito e a realidade, a vida e a representação nesta maravilhosa obra escrita e proibida durante o regime fascista e ditatorial em Portugal onde o passado opressor em que os gordos emagrecem os ricos se repetiu no presente e, certamente incomodou os ditadores que se identificaram nesta peça que aborda o domínio filipino e o sebastianismo.

Bibliografia:
1. ARISTÓTELES. Arte poética. São Paulo: Martin Claret, 2004.

2. CORREIA, Natália. O Encoberto. Lisboa: Ed. Afrodite.

         3. DAVID, Sérgio Nazar. Paixão e revolução. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996.

4. HERMANN, Jacqueline. No reino do desejado: a construção do Sebastianismo em Portugal (séculos XV e XVII). São Paulo: Cia das         Letras, 1998.

         5. MALEVAL, Maria do Amparo Tavares (Org.) Atualizações da Idade Média.
                       Rio de Janeiro: Editora Agora da Ilha, 2000.


6. RYNGAERT, Jean-Pierre. Introdução à análise do teatro. São Paulo: Martins
               Fontes, 1995.

7. SAMUEL, Roger (Org.).  Manual de teoria literária. Petrópolis: Vozes, 1992.

















[1] HERMANN, Jacqueline. No reino do desejado: a construção do Sebastianismo em Portugal (séculos XV e XVII). São Paulo: Cia das Letras, 1998.
[2] Idem. p. 194.
[3] CORREIA, Natália. O Encoberto. Lisboa: Ed. Afrodite. p. 25.
[4] RYNGAERT, Jean-Pierre. Tentativa de descrição. In: ----. Introdução à análise do  teatro. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 44.
[5] Idem. p. 36-37.
[6] ARISTÓTELES. Arte poética. São Paulo: Martin Claret, 2004. p.33.
[7] Idem. p.68.
[8] Op. Cit. nota 3. p. 38.
[9] Idem. p. 40.
[10] Idem. p. 36.
[11] Idem. p. 84.
[12] Idem. p. 79-80.
[13] Idem. p. 108.