A cidade no conto “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro” de Rubem
Fonseca
Jorge Eduardo Magalhães *
RESUMO:
Este
artigo trata de uma breve análise da vida urbana no Rio de Janeiro. Podemos
perceber o conflito da existência entre tipos tão diversos e identificados pelo
personagem central, além disso, esta personagem corresponderá à consciência
perdida entre as pessoas que ignoram a realidade a sua volta e deixam de
perceber a decadência dessa sociedade cada vez mais imediatista, desumana e
cruel com aqueles que fogem ao padrão de civilidade.
Palavras-chave:
cidade, andarilho, escritor
ABSTRACT:
This article is a short studying about the urban life in a great modern city, like Rio de Janeiro . We can see a conflict of existence between many characters identified by the main character, Augusto, therefore, this character will become the lost conscience among the general people that pass over the reality around themselves and don’t note the decadence of that society more and more immediate, and so cruel with those are out of civility model.
*Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Especializações Latu Sensu em Literaturas Brasileira
e Portuguesa, Mestrado em Literatura Portuguesa , Professor de Língua
Portuguesa da rede pública do Estado do Rio de Janeiro e do Município de São
Gonçalo – RJ. E-mail: jemagalhaes@yahoo.com.br
1. Introdução
Este artigo visa a enfocar a cidade
do Rio de Janeiro não só em sua geografia, ou nos seus prédios, como também nos
seus habitantes caracterizados no conto de Rubem Fonseca. Tais personagens são
vistos como partes integrantes da cidade, assim como toda a sua arquitetura e
geografia.
O conto “A arte de andar pelas ruas
do Rio de Janeiro”, de Rubem Fonseca, focaliza o centro da cidade com todo o
esplendor de sua arquitetura e suas progressivas transformações; o texto
procura também caracterizar os seus habitantes como personagens caricatos e
típicos do nosso cotidiano, principalmente os que andam pela noite como
mendigos, prostitutas, gigolôs, pichadores e até evangélicos fanáticos, membros
da sociedade carioca.
A partir de suas observações, o
personagem Augusto Machado procura analisar de forma crítica a decadência
cultural na cidade do Rio de Janeiro, tendo como exemplo desse aspecto o fato
dos antigos e tradicionais cinemas, que eram freqüentados pela sociedade do Rio
de Janeiro, entrarem em decadência e os seus prédios serem utilizados por evangélicos
como templos de oração.
Todos os personagens do conto, desde
o fanático pastor que jura ter visto o demônio, até os demais personagens que
rondam pela noite do centro carioca, como Augusto, o protagonista, e a
prostituta, também são bastante caracterizados e estão ambientados com os
principais pontos da cidade, como se aqueles locais fossem seus habitats
naturais.
Através das vivências de Augusto, o
personagem que anda pela cidade durante a noite sob o pretexto de escrever um
livro sobre a arte de andar nas ruas do Rio, o autor nos mostra um outro lado
decadente da cidade de uma forma bem crua e realista, um lado desprovido de
qualquer espécie de beleza.
As andanças de Augusto e a sua ânsia
de escrever detalhadamente sobre a cidade do Rio de Janeiro, mais precisamente
o centro da cidade, fazem com que o narrador-escritor, através da trajetória e
experiências desse personagem, descreva minuciosamente a cidade em todos os
seus aspectos.
Esta descrição mencionada pode até ser
comparada à pintura de paisagens que retratam e desvendam os mistérios dessa
cidade que só mesmo um andarilho e dedicado à arte de andar nas ruas, atento
como Augusto, pode notar; e que o transeunte comum, em sua pressa habitual do
dia a dia dos grandes centros urbanos, não consegue observar, pois não percebe
as particularidades da cidade onde vive.
Observemos esta afirmação de Renato
Cordeiro Gomes:
Augusto, o
andarilho-escritor, tem a intenção de resgatar essa memória através do livro
que escreve. Anda para escrever e restaurar a cidade pela letra. Sua escrita
combaterá uma perversão com outra. Busca uma arte de andar pelas ruas do
centro, atividade insólita dos tempos pós-modernos. Não é o andar apressado do
mundo do trabalho que se localiza no centro (...)[1]
O
“andarilho-personagem-escritor” Augusto, justamente para poder observar e
enfocar melhor todos esses minuciosos detalhes, prefere fazer suas caminhadas
durante a noite, quando consegue ficar longe da agitação diurna e tem contato
com habitantes até então anônimos para a maioria das pessoas que transitam
pelas ruas apenas em horário comercial.
A princípio o narrador fala um pouco
da história desse centro da cidade abandonado e decadente, onde antigamente a
maioria dos comerciantes moravam com as suas famílias nos sobrados em cima de
suas lojas, inclusive no sobrado em cima da chapelaria onde mora Augusto; mas
com a debandada das famílias para os bairros da zona sul, quase ninguém mais
morava no centro.
Observemos este trecho do conto:
O primeiro dono do prédio da chapelaria morou lá com a
família há muitos anos atrás. Seus descendentes foram dos poucos comerciantes
que continuaram morando no centro da cidade depois da grande debandada para os
bairros, principalmente para a zona sul. Desde os anos 40 quase ninguém morava
mais nos sobrados das principais ruas do centro (...)[2]
O autor não só descreve a cidade e
suas ruas, como também fala um pouco da história delas.
3. Os anônimos habitantes da cidade oculta
Todos os personagens que aparecem neste
conto de Rubem Fonseca, inclusive Augusto, o personagem-andarilho-escritor, cujo
seu verdadeiro nome é Epifânio, são, na verdade, estereótipos existentes em
nossa sociedade, que habitam não só a cidade do Rio de Janeiro, mas qualquer
grande centro urbano no mundo, o que caracteriza a universalidade da obra.
Mendigos, prostitutas analfabetas,
gigolôs e jovens grafiteiros que picham prédios históricos – como por exemplo,
o Teatro Municipal, que no texto é pichado por adolescente do Cachambi, (um
bairro do subúrbio) e ainda por cima picha com erro de ortografia – ou seja,
personagens ignorados e rejeitados pela sociedade, mas que são sempre
observados por Augusto.
É de Renato Cordeiro esta afirmação:
A narrativa dissemina, pelos percursos de Augusto, cenas
que mimetizam a violência urbana proliferante com que convivemos, entre
assustados e indiferentes, para revelar o estado de abandono e miserabilização
da antiga Cidade Maravilhosa. O centro de uma perdida cidade cordial e malandra
é agora povoado de mendigos, prostitutas decadentes, grafiteiros, pivetes,
assaltantes, camelôs, sem-teto, que a cidade em crise produz, segrega e expele
como dejetos (...)[3]
Augusto, ou Epifânio, trabalhava na
companhia de água e esgotos até ganhar um prêmio e ter condições de largar o seu
emprego para poder se dedicar apenas ao livro que estava escrevendo sobre a
arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro, título do conto de Rubem Fonseca.
O
escritor-personagem já pensava há tempos em viver só de escrever, mas um amigo,
assim como ele, escritor lhe disse que era obsceno viver só de escrever e que
era melhor continuar trabalhando na Companhia de Águas e Esgotos para manter o
seu sustento.
Para facilitar o objetivo de seu projeto
literário e poder estar mais próximo de seu material de pesquisa, Augusto decidi
morar na rua Sete de Setembro, e durante a noite anda por todo o centro da
cidade do Rio de Janeiro. É nessas suas andanças que o andarilho-escritor entra
em contato com os mais variados personagens ocultos existentes em nossa
sociedade.
Seu contato com esses personagens se
dá de forma espontânea, ou seja, se dá de acordo com o desenrolar do conto, no
qual Augusto percorre as principais ruas do centro e se depara com esses tipos
excluídos e marginalizados tão comuns na nossa sociedade contemporânea.
O seu contato com Kelly aconteceu
devido ao hábito de Augusto de ensinar as prostitutas a ler pelo seu método
infalível.
Quanto ao gigolô de Kelly e ao
pastor da Igreja do Jesus Salvador das Almas, o texto não deixa claro o porquê
do primeiro ficar assustado com a presença de Augusto e o segundo associar a
sua figura ao demônio.
O conto descreve uma violência bem
diferente da que é habitual em outros contos de Rubem Fonseca, os quais mostram
uma violência bem explícita, com assassinatos e crimes de uma maneira geral. Em
“A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, o autor retrata uma violência de
caráter social por meio da qual a solidão da cidade grande e a miséria castigam
o ser humano.
A degradação, o
abandono e a decadência cultural da cidade, também fazem parte desse contexto
da violência urbana, muitas vezes problemas que estão diante de todos, mas
passam praticamente imperceptíveis por seus habitantes devido à correria do dia
a dia dos grandes centros urbanos.
É de Alfredo Bosi esta afirmação:
Há os que submetem percepções e lembranças à luz da
análise materialista clássica, dissecando os motivos (em geral perversos) dos
comportamentos de seus personagens que ainda trazem a marca de tipos sociais. É
o caso de Rubem Fonseca (...)[4]
A violência
descrita no texto tem como responsável a própria sociedade e o caos dos centros
urbanos desvendados pelo andarilho e escritor Augusto, que presencia em seus
passeios noturnos tal realidade.
4. O
flaneur carioca
A grande questão do séc. XX é o
dilaceramento do tempo que dilacera a alma do homem, e esse mesmo homem
descobre que é capaz de criar um personagem que reflete, concretiza a
representação da vida humana a partir de um projeto em que se contempla a temporalidade.
Augusto será esse personagem que em
suas caminhadas pela cidade resgata a imagem do flâneur – o ser que observa o mundo que o cerca de maneira real e
descritiva, comum na literatura do séc. XIX, vê a rua como seu lar e desvenda
aos olhos do leitor os diversos tipos humanos deste universo – o flâneur é uma espécie de resistência de
não ser massificado, que consegue construir, no imaginário, a partir de uma
palavra, o caráter de um transeunte, ele se apropria dessa realidade para
depois recusá-la.
(...) Seu plano naquele dia é ficar entre as árvores
até a hora de fechar e quando o guarda começar a apitar ele se esconderá na
gruta; (...) Entre as árvores não sente irritação, nem fome, nem dor de cabeça.
Imóveis, enfiadas na terra, vivendo em silêncio, indulgentes com o vento e os
passarinhos, indiferentes aos próprios inimigos, ali estão elas, as árvores, em
volta de Augusto, e enchem sua cabeça de um gás perfumado e invisível que ele
sente, e que transmite tal leveza ao seu corpo que se ele tivesse a pretensão,
e a vontade arrogante, poderia até mesmo voar.[5]
Em suas
andanças, o flâneur carioca descreve
tipos caricatos que representam uma decadência real da sociedade, como o
personagem João, cujo fracasso evidencia o descaso geral pela arte e pela
cultura, mas Augusto não se entrega, ao contrário de João, faz um jogo entre
distância e proximidade, entra na realidade, apropria-se dela e consegue manter
sua individualidade.
Observe a seguir o trecho do conto em
que percebemos o seu jogo entre o aproximar-se e o distanciar-se:
Augusto vai até a Ramalho Ortigão, passa ao lado da
Igreja de São Francisco e entra na rua do Teatro, onde agora há um novo ponto
de jogo de bicho, um sujeito sentado num banco escolar anotando num bloco as
apostas dos pobres que não perderam a esperança, e eles devem ser muitos, os
miseráveis que não perderam a fé, pois cada vez há mais pontos de jogo
espalhados pela cidade.[6]
Mais adiante vamos perceber que o
próprio Augusto, apesar de pretender o distanciamento para melhor concluir o
seu projeto de escrever um romance, também sente-se afetado pelo mundo que o
cerca e o isolamento surge como uma espécie de defesa natural do ser humano. Ao
isolar-se do mundo aparente, entra em contato com os ratos e morcegos, a
umidade e a escuridão das grutas, as árvores e os mendigos, tudo junto num
mundo a parte, tão perto e tão distante da realidade. Então, Augusto, o
escritor-andarilho, assemelha-se aos demais tipos que descreve, também ele é um
dos “miseráveis que não perderam a fé”, também ele para conseguir ser um
andarilho precisou apostar e ganhar um prêmio, mas com uma diferença, a total
consciência da realidade a sua volta.
Dessa consciência advém, sem dúvida,
um mal-estar implícito em suas observações, em seu convívio em sociedade, em
suas relações pessoais, e em seu estar no mundo. Augusto se aproveita desse mal-estar
para fazer sua crítica social e para expurgar a dor da sua existência.
Veja esta afirmativa de Freud:
Contra o sofrimento que
possa advir dos relacionamentos humanos, a defesa mais imediata é o isolamento
voluntário, o manter-se à distância das outras pessoas. A felicidade passível
de ser conseguida através desse método é, como vemos, a felicidade da quietude.[7]
Assim, como diz para si o personagem,
“solvitur ambulando”, o nosso flâneur
termina o conto justamente à beira do cais do porto da cidade do Rio de
Janeiro, onde as águas fedem e batem no paredão como se fossem um gemido, e o
dia vai amanhecendo num domingo cinzento e sem os restaurantes que dão os
restos de comida para os miseráveis.
5. Conclusão
A descrição da cidade do Rio de
Janeiro, tanto nos aspectos físico e geográfico quanto em relação aos seus
habitantes, pretende sintonizar Augusto, o “escritor-andarilho-personagem” com
a cidade em si.
Augusto quer resgatar alguma coisa
nesta cidade perdida, e tal tentativa faz com que Augusto escreva suas
observações no sobrado sempre depois de suas exaustivas andanças noturnas.
Observemos esta afirmação de Renato
Cordeiro Gomes:
[Augusto] procura, portanto, estabelecer uma religação
com a cidade, a partir do centro. Sobre este lugar de origem do próprio
personagem e do Rio, será o capítulo inaugural do livro. Quer fazer-se um com a
cidade, comungá-la.[8]
O centro da cidade do Rio de Janeiro
não mais uma área residencial, mas simplesmente um miolo comercial com o qual
Augusto tanto se identifica e está tão familiarizado.
5. Bibliografia
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São
Paulo: Editora Cultrix,
1994.
FONSECA,
Rubem. Romance negro e outras histórias. São
Paulo: Companhia das
Letras, 1992.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1997.
GOMES, Renato Cordeiro. Todas
as cidades, a cidade: literatura e experiência urbana. Rio de Janeiro:
Rocco, 1994.
HAUSER, Arnold. História social da literatura e da arte. São
Paulo: Editora Mestre Jou. s/d
LIMA, Luiz Costa. Sociedade e discurso ficcional / Luiz Costa
Lima. Rio de Janeiro: Guanabara,
1986.
SOUZA, Roberto
Acízelo. Teoria da literatura. São
Paulo: Editora Ática, 1991.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1997.
[1] GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade: literatura e experiência urbana. Rio de
Janeiro: Rocco, 1994. p.151.
[2] FONSECA,
Rubem. A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro. In---- Romance Negro e outras histórias. São Paulo: Companhia das
Letras,1992. p. 16.
[3] Op. Cit.
nota 1. p. 150.
[4] BOSI,
Alfredo. A ficção entre os anos 70 e 90: alguns pontos de referência. In---- História concisa da literatura brasileira. São Paulo:
Cultrix, 1994. p. 436.
[5] Op. Cit.
Nota 2. p.27.
[6] Op. Cit.
Nota 2. p.23.
[7] FREUD,
Sigmund. O mal-estar na civilização.
Rio de Janeiro: Imago Ed., 1997. p. 26.
[8] Op. Cit.
nota 1. p. 152.
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