Aquelas que não foram
(O desfecho não-amoroso de uma personagem
querosiana e duas machadianas)
I – Introdução
Tanto Machado de Assis quanto Eça de Queirós falam muito através das
personagens secundárias de suas respectivas obras, ou seja, quando compõem
personagens com poucos traços não querem dizer que sejam simplesmente tipos,
são personagens com vida.
Na obra desses dois autores podemos perceber que essas várias personagens
têm as suas funções e seus significados, mas são as figuras femininas que terão
maior destaque nesta pesquisa. Poderíamos falar de adúlteras como Virgília de Memórias Póstumas de Brás Cubas e Luísa
de O primo Basílio; interesseiras
como Marcela, também de Memórias póstumas,
e Adélia de A relíquia; supostas adúlteras como Capitu de Dom Casmurro; adúlteras em potencial
como Sofia de Quincas Borba, que só
não traiu o marido porque o belo Carlos Maria não foi ao seu encontro marcado.
Ainda temos personagens que simbolizam a influência da religião na vida pessoal
como é o caso de dona Glória de Dom
casmurro que coloca o filho Bentinho, contra a vontade dele, em um
seminário e dona Patrocínio de A relíquia
que quer de qualquer modo, a todo custo, que seu sobrinho Teodorico Raposo
se mantenha casto, a condição principal para que este seja o seu herdeiro.
O título Aquelas que não foram se
dá, justamente, devido ao fato das personagens estudadas poderem ter tido um
destino diferente, ou seja, um desfecho amoroso de três personagens dos autores
estudados, sendo uma de Eça de Queirós e duas de Machado de Assis: dona
Felicidade de O primo Basílio, de Eça
de Queirós, Eugênia, de Memórias Póstumas
de Brás Cubas e dona Tonica de Quincas
Borba, estas duas últimas de Machado de Assis.
Serão abordados e destacados alguns aspectos e características dessas três
personagens dentro das respectivas obras.
A ordem dos capítulos foi colocada pela ordem cronológica da publicação
dos três romances, porém, poderíamos falar respectivamente de dona Felicidade e
dona Tonica, pois estas têm em comum a ansiedade quanto a conseguir um
casamento, o que as diferencia é que a primeira escolheu o conselheiro Acácio,
ama-o de verdade.
II – Dona Felicidade: a paixão pelo
conselheiro
Publicado em 1878, o romance O
primo Basílio de Eça de Queirós tem como foco central os encontros amorosos
de Luísa e Basílio, seu primo e namorado no passado, quando Jorge, o seu
marido, viaja a trabalho ao Alentejo e a consequente chantagem de Juliana, a
empregada de Luísa, ao interceptar uma carta de amor entre os amantes. Tal
chantagem faz Luísa adoecer lentamente o que a leva à morte.
Eça fez uma literatura de combate e questionou toda a literatura que não
tinha este mesmo propósito criticando os escritores românticos poupando apenas
Almeida Garrett. Tendo como subtítulo “Episódio doméstico”, O primo Basílio critica justamente os
hábitos da burguesia portuguesa com suas obviedades e tradicionalismos
monárquicos e clericais.
Vejamos esta afirmação de Carlos Reis:
O primo
Basílio corresponde de facto, ao
fundamental da doutrinação naturalista, interiorizada por um Eça então
consciente das responsabilidades sociais da arte; nele representa-se uma
intriga de adultério, juntando-lhes ainda a atmosfera morna e medíocre da
Lisboa de regeneração que tem na monotonia dos serões familiares e no Passeio
Público os seus únicos divertimentos.[1]
Dentro do vai e vem da trama, várias personagens secundárias, amigas de
Jorge e Luísa circulam pelo romance e frequentam a casa do casal como
Sebastião, velho amigo de Jorge; Julião Zuzarte, primo de Jorge, um médico
pobre e sem nomeação; Leopoldina, uma antiga colega dos tempos de colégio, mais
conhecida por “Pão de queijo” porque passa de boca em boca pelo fato de trair o
marido abertamente e por isso, sua amizade não é aprovada por Jorge. Temos
ainda o conselheiro Acácio, um antigo amigo do pai de Jorge, que aparentemente para
um leitor mais desatento, um homem óbvio e formal, típico do século dezenove. O
conselheiro Acácio, [2], e
dona Felicidade, nosso objeto de estudo, uma cinquentona amiga de Luísa que é
completamente apaixonada pelo conselheiro, que sofre de crises gasosas.
Observemos esta descrição que o narrador querosiano faz de dona
Felicidade:
Às nove
horas, ordinariamente, entrava D. Felicidade de Noronha. Vinha logo da porta
com os braços estendidos, o seu bom sorriso dilatado. Tinha cinqüenta anos, era
muito nutrida, e, como sofria de dispepsia e de gases, àquela hora não se podia
espartilhar e as suas formas transbordavam. Já se viam alguns fios brancos nos
seus cabelos levemente anelados, mas a cara era lisa e redonda, cheia, de uma
alvura baça e mole de freira; nos olhos papudos, com a pele já engelhada em
redor, luzia uma pupila negra e úmida, muito móbil; e aos cantos da boca uns
pêlos de buço pareciam traços leves e circunflexos de uma pena muito fina. Fora
a íntima amiga da mãe de Luísa, e tomara aquele hábito de vir ver a pequena aos
domingos. Era fidalga, dos Noronhas de Redondela, bastante aparentada em
Lisboa, um pouco devota, muito da Encarnação.[3]
Dentre estas várias personagens que transitam na trama de paixão e adultério,
no triângulo amoroso, representado por Jorge, Luísa e Basílio, dona felicidade
representa esse resquício do Cristianismo beato e retrógado que ainda resistia em
Portugal na segunda metade do século dezenove.
O conselheiro Acácio tem uma visão equilibrada dos homens daquela época,
vivendo como podia aquela sociedade do século dezenove. Vive como pode a
sociedade daquela época. Acácio era um democrata e regenerador, pois tem na
sala de sua casa o busto de Rodrigo da Fonseca Magalhães, um dos mais
importantes políticos liberais portugueses e maior figura do movimento da Regeneração.
O conselheiro Acácio era um monarquista e democrata ao mesmo tempo, era
religioso, mas não fanático, queria uma igreja regenerada.
Muitos leitores desatentos veem Acácio como um parvo, um homem
superficial, mas sua aparente superficialidade era típica dos homens da época. Sabia
representar na sociedade e guardar na vida privada o que era de tal
esfera.
Acácio mostra-se austero, no entanto, era amante de sua empregada, mas
dizia que tinha “apagado o fogo das paixões”, tem escondido um livro de Bocage,
sua cama era sempre arrumada com duas fronhas, provavelmente para a empregada
também se deitar. Não podemos ser leitores anacrônicos e chamá-lo de hipócrita,
pois o seu comportamento pomposo era típico da sociedade da época e quando
dizia sobre “seu apagado fogo das paixões” era porque era esta a resposta que
se esperava de um senhor distinto.
A paixão de dona Felicidade pelo Conselheiro se dá não pelo que ele
exatamente é, mas pelo que aparenta ser. Na verdade visualiza em Acácio a
figura de um homem ideal na visão das mulheres do século dezenove, um homem formal
e polido.
O seguinte trecho de O primo
Basílio mostra quando o narrador fala sobre a paixão de dona Felicidade:
Havia cinco anos que D. Felicidade o amava. Em casa de Jorge
riam-se um pouco com aquela chama. Luísa dizia: "Ora! E uma caturrice dela!"
Viam-na corada e nutrida, e não suspeitavam que aquele sentimento concentrado,
irritado semanalmente, queimando em silêncio, a ia devastando como uma doença e
desmoralizando como um vício.[4]
Mesmo tardiamente, dona Felicidade quer se casar e cumprir mais esta
“exigência” da sociedade, cujo escolhido é o conselheiro. Este, porém, não é só
um mero instrumento de uma convenção social, dona Felicidade realmente o ama.
Seria esta uma crítica de Eça ao ultrapassado Romantismo? Ao amor idealizado?
O conselheiro, por sua vez, com sua forma tolhida, não esboça nenhum
interesse em relação à dona Felicidade.
No capítulo onze quando Dona
Felicidade dá oito moedas para que enfeiticem o Conselheiro Acácio, fazendo-o
apaixonar-se por ela, não adivinha que o Conselheiro vive amasiado com a
própria empregada.
A seguir, uma cena de O primo Basílio onde o narrador descreve
a personalidade austera e os ideais do Liberalismo do conselheiro Acácio, ao
mesmo tempo em que mostra certa inquietude de dona Felicidade em relação à criada
do seu amado:
Falaram de
criados, das suas exigências. Estavam cada vez mais atrevidos! E em se lhes dando
confiança! E que imoralidade!...
- Muitas vezes é
culpa das amas - disse D. Felicidade. - Fazem das criadas confidentes, e isto,
em elas apanhando um segredo, tornam-se as
donas da casa...
As mãos trêmulas
de Luísa faziam-lhe tilintar a chávena. Disse, com uma voz afetadamente risonha:
- E o
Conselheiro, que tal de criados?
Acácio tossiu:
- Bem. Tenho uma
pessoa respeitável, com bom paladar, muito escrupulosa em contas...
- E que não é
feia - acudiu Julião. - Assim me pareceu uma vez que fui à Rua do Ferregial...
Uma vermelhidão
espalhara-se pela calva do Conselheiro. D. Felicidade fitava-o ansiosamente,
com a pupila chamejante. Acácio, então, disse
com severidade:
- Nunca reparo
para a fisionomia dos subalternos, Sr. Zuzarte.
Julião ergueu-se
e enterrando as mãos nos bolsos, jovialmente:
- Foi um grande
erro abolir a escravatura!...
- E o princípio
da liberdade? - acudiu logo o Conselheiro. - E o Princípio da liberdade? Que os
pretos eram grandes cozinheiros,
concordo... Mas a liberdade é um bem maior.
Alargou-se então
em considerações: fulminou os horrores do tráfico, lançou suspeitas sobre a
filantropia dos ingleses, foi severo com
os plantadores da Nova Orleans, contou o caso da
Charles et Georges:
dirigia-se exclusivamente a Julião, que fumava, cabisbaixo.
D. Felicidade
fora-se sentar ao pé de Luísa e muito inquieta, falando-lhe ao ouvido:
- Tu conheces a
criada do Conselheiro?
- Não.
- Será bonita?
Luísa encolheu
os ombros.
- Não sei que me
diz o coração, Luísa! Estou a abafar!
E enquanto
Acácio, de pé, perorava para Julião, D. Felicidade ia murmurando a Luísa as queixas
da sua paixão.[5]
Como podemos observar, nessa roda viva, no meio da angústia de Luísa,
Acácio mostra um jeito formal e austero, típico do século dezenove. Embora
durma com a empregada, não perde a formalidade e o discurso superior em relação
aos subalternos, ao mesmo tempo que se diz radicalmente contra a escravidão
quando interpela o discurso de Julião, certamente para provocar o conselheiro,
enquanto isso, dona Felicidade suspira apaixonada e sente ciúmes da criada perguntando
a Luísa se esta é bonita.
No final do
romance, após o enterro de Luísa, Jorge despede as criadas e vai para a casa de
Sebastião. Dona Felicidade descobre que o Conselheiro Acácio era amante de
Adelaide, empregada dele e, decepcionada, entra para um convento.
Dona Felicidade realmente amava o conselheiro Acácio, poderia ter se
casado com ele e ser uma boa esposa. Poderiam ter sido felizes, mas não foi.
Seu destino foi uma das poucas opções que restavam às mulheres que não
conseguiam um casamento: a vida religiosa.
Enquanto isso, Basílio e seu amigo Reinaldo foram tomar xerez na Taverna
Inglesa.
Dona Felicidade, assim como Acácio, Sebastião, Ernestinho Ledesma, entre
outros, numa primeira leitura, podem nos parecer meros coadjuvantes, mas têm
importância fundamental em O primo
Basílio. Podemos afirmar que dona Felicidade representa a monotonia da
segunda metade do século dezenove e segundo o próprio Eça, significa a beatice
parva e excitada.
III – O destino da flor da moita
No capítulo doze de Memórias
Póstumas de Brás Cubas intitulado “Um episódio de 1814” , o defunto-autor, como
se denomina o próprio narrador-personagem logo no primeiro capítulo. Neste
episódio do ano de 1814 quando tinha apenas nove anos e seu pai reunia seus
convivas para celebrar a queda de Napoleão, Brás, numa espécie de vingança por
ninguém ter lhe dado a sobremesa, resolveu seguir o doutor Vilaça, um dos
convidados e o viu atrás de uma moita a conversar com dona Eusébia, a irmã do
sargento-mor Domingues. Brás saiu correndo pela chácara gritando o que viu para
todos, o que causou um grande embaraço, afinal de contas Vilaça era um homem
casado.
Vejamos esta passagem de Memórias
Póstumas de Brás Cubas:
- O
Doutor Vilaça deu um beijo em
Dona Eusébia ! Bradei.
Eu
correndo pela chácara. Foi um estouro esta minha palavra; a estupefação
imobilizou a todos; os olhos espraiavam-se a uma e outra banda; trocavam-se
sorrisos, segredos, à socapa, as mães arrastavam as filhas, pretextando o
sereno. Meu pai puxou-me as orelhas, disfarçadamente, irritado deveras com a indiscrição;
mas, no dia seguinte, ao almoço, lembrando o caso, sacudiu-me o nariz, a rir:
Ah! brejeiro! ah! brejeiro![6]
Como podemos perceber, a peraltice de Brás causa um enorme mal estar, mas
no dia seguinte seu pai acha graça da travessura.
A narrativa dá um salto no tempo, Brás se envolve com a espanhola,
Marcela, e seu pai o manda estudar leis na Universidade de Coimbra. Anos
depois, após divertir-se muito no velho continente, retorna da Europa, já
formado, para rever sua mãe que estava muito enferma. Não chega a tempo para
ver a mãe com vida.
A morte de sua mãe lhe faz reviver o antigo episódio de 1814, pois o
Prudêncio, o moleque que na infância de Brás era o seu cavalo, pergunta-lhe se
não iria visitar dona Eusébia, afinal,
[7].
Brás decide visitá-la em sua chácara da Tijuca que ficava perto de onde
ele se encontrava.
No capítulo trinta, intitulado “A flor da moita”, ao visitar dona Eusébia
conhece Eugênia, que supostamente seria também filha do Vilaça devido ao
episódio de 1814, e imediatamente foram apresentados.
Assim Brás Cubas descreve o seu primeiro contado com Eugênia:
Eugênia,
a flor da moita, mal respondeu ao gesto de cortesia que lhe fiz; olhou-me
admirada e acanhada, e lentamente se aproximou da cadeira da mãe. A mãe
arranjou-lhe uma das tranças do cabelo, cuja ponta se desmanchara.
-
Ah! travessa! dizia. Não imagina, doutor, o que isto é... E beijou-a com tão
expansiva ternura que me comoveu um pouco; lembrou-me minha mãe, e - direi
tudo, - tive umas cócegas de ser pai.[8]
Brás Cubas a chama
pejorativamente de “flor da moita” justamente devido ao episódio de sua
infância em1814 quando viu dona Eusébia e o doutor Vilaça se beijando atrás da
moita e conclui maliciosamente que Eugênia foi concebida ali mesmo naquele
local.
Ainda neste capítulo
percebemos o orgulho e dignidade de Eugênia e o primeiro incômodo de Brás a seu
respeito quando esta passa de cavalo por ele, orgulhoso, tem certeza que ela
olhará para trás, mas não o faz.
Algo mexe com Brás, sua
soberba? Seu orgulho? Talvez. Sente-se também incomodado ao descobrir que
Eugênia é coxa de nascença, ao cometer a gafe de perguntar se ela havia
machucado o pé. Pergunta a si mesmo o porquê de ser bonita se é coxa e
vice-versa.
Brás atende ao pedido
de Eugênia para que ele não desça e ele permanece na chácara por mais algum
tempo como fica bem claro no capítulo trinta e três, “Bem aventurados os que
não descem”.
Observemos este trecho do capítulo:
Não
desci, e acrescentei um versículo ao Evangelho:
-Bem-aventurados
os que não descem, porque deles é o primeiro beijo das damas. Com efeito, foi
no domingo esse primeiro beijo de Eugênia, - o primeiro que nenhum outro varão jamais
lhe tomara, e não furtado ou arrebatado, mas candidamente entregue, como um
devedor honesto paga uma dívida. Pobre Eugênia! Se tu soubesses que idéias me
vagavam pela mente fora naquela ocasião! Tu, trêmula de comoção, com os braços
nos meus ombros, a contemplar em mim o teu bem-vindo esposo, e eu com os olhos
em 1814, na moita, no Vilaça, e a suspeitar que não podias mentir ao teu
sangue, à tua origem...[9]
Percebemos que o narrador-personagem se posiciona como se estivesse
fazendo um favor por beijá-la e faz um julgamento de seu caráter afirmando que
ela já o via como um futuro esposo num casamento com um bom partido e atribui
tal fato à sua origem.
Na
segunda-feira Brás anuncia sua partida e diz lhe querer muito bem, discurso
este que ela não acredita e diz que [10]. O
próprio Brás confessa ao leitor que suas palavras a Eugênia não passam de
hipérboles frias.
Dentro do contexto social da sociedade do século dezenove podemos chegar
à conclusão que realmente Eugênia podia ter pensado num possível casamento com
Brás, afinal de contas, um beijo naquela sociedade era praticamente sinônimo de
um compromisso, não por interesse, mas sim por realmente ter gostado dele.
Lembremos que Eugênia, ao lado de dona Fernanda de Quincas Borba é uma das poucas personagens machadianas que têm
dignidade. Os poucos capítulos em que aparece, Eugênia demonstra seu caráter e
seu orgulho, afinal, não se rebaixa diante dos ricos. Fato este que
provavelmente incomodou Brás Cubas.
Vejamos o comentário de Benício Medeiros a respeito do perfil de Eugênia:
Os ricos não são bons, os pobres também
não, e a única personagem direita da história, Eugênia, acaba pedindo esmolas
num cortiço. Além disso, apesar de ser boa, é coxa de nascença, - defeito
exibido exaustivamente pelo escritor.[11]
O perfil e o histórico de Eugênia são conduzidos de acordo com a
pressuposição do narrador-personagem. Temos certeza de que ela é filha de dona
Eusébia, que é coxa e que acaba em um cortiço. Não temos certeza de que
realmente seja filha do Vilaça, isso quem diz é Brás Cubas e as especulações de
seu tio João e da vizinhança a respeito do legado que deixou para dona Eusébia
antes de morrer e os rumores do nascimento de uma menina.
Acreditamos, existe uma grande possibilidade, mas não temos certeza
absoluta, afinal, segundo o próprio Brás diz que seu tio João era “guloso em
escândalos”, o famoso sujeito indeterminado, disseram-me, falaram-me.
Segundo José Luís Jobim:
Talvez nas Memórias Póstumas já não seja mais possível postular como falta a
ausência do que nunca se pretendeu, que lá estivesse, porque o romancista em
vez de supor um leitor que reconstituiria tudo o que o escritor configurou
exaustivamente na obra, preferiu supor um leitor que ativamente preencheria os
espaços vazios deixados no texto, para a atividade constitutiva da leitura.[12]
Eugênia é uma das personagens mais intrigantes da obra de Machado,
justamente, por não sabermos muito sobre ela. O leitor fica intrigado e curioso
quanto à sua trajetória. Seria realmente ela filha do Vilaça? O leitor,
conduzido pela narrativa nas lacunas que ficaram vazias.
Publicado em 1881, Memórias póstumas
de Brás Cubas, utiliza um narrador-personagem que já está morto, ou seja,
um defunto-autor, como o próprio Brás Cubas se denomina. Este recurso é usado
para que o narrador se dispa de toda hipocrisia e retrate a sua verdadeira
personalidade, inclusive assume a sua mediocridade.
Em vida, Brás Cubas vivia num mundo de superficialidades onde, apesar de
ter se formado, não levou a sério os estudos, usava frases feitas para
impressionar com sua retórica e, principalmente, fazia caridade para
autopromoção.
No capítulo cento e cinquenta e oito que marca o reencontro de Brás e
Eugênia anos depois quando este fazia caridade num cortiço e encontra Eugênia
vivendo naquela miséria, traça um rápido perfil destas duas personagens.
Leia-se um trecho deste capítulo:
No
fim de alguns anos, três ou quatro, estava enfarado do ofício e deixei-o, não
sem um donativo importante, que me deu direito ao retrato na sacristia. Não
acabarei, porém, o capítulo, sem dizer que vi morrer no hospital da Ordem,
adivinhem quem?... a linda Marcela; e via-a morrer no mesmo dia em que,
visitando um cortiço, para distribuir esmolas, achei... Agora é que não são
capazes de adivinhar.., achei a flor da moita, Eugênia, a filha de Dona Eusébia
e do Vilaça, tão coxa como a deixara, e ainda mais triste. Esta, ao
reconhecer-me, ficou pálida, e baixou os olhos; mas foi obra de um instante.
Ergueu logo a cabeça, e fitou-me com muita dignidade. Compreendi que não
receberia esmolas da minha algibeira, e estendi-lhe a mão, como faria à esposa de
um capitalista. Cortejou-me e fechou-se no cubículo. Nunca mais a vi; não soube
nada da vida dela, nem se a mãe era morta, nem que desastre a trouxera a
tamanha miséria. Sei que continuava coxa e triste. (...)[13]
Neste trecho percebemos um rápido perfil de Brás Cubas onde ele procura a
glória e o sucesso, dava donativos para ter seu retrato na sacristia da igreja,
dava esmolas em um cortiço para pousar de caridoso. Quanto à Eugênia, seu
orgulho e sua dignidade foram provados quando, mesmo um pouco constrangida, cumprimentou
Brás Cubas e não aceitou sua esmola.
Segundo Roberto Schwarz, no caso de Brás Cubas, [14].
Como já foi dito anteriormente, conhecemos mais Eugênia através da visão
de Brás Cubas, mas uma das poucas coisas que podemos ter certeza é que ela tem
dignidade e até hoje temos a mesma dúvida de Brás Cubas: O que a trouxe a
tamanha miséria?
IV – Dona Tonica: o casamento como
objetivo de vida
Na conservadora sociedade do século dezenove cabia à mulher somente três
destinos: casar-se, ir para um convento ou cuidar dos pais ou dos sobrinhos. Em Quincas
Borba temos
dona Tonica, uma mulher de trinta e nove anos que ainda não se casou e vive com
seu pai.
Publicado em 1891, o romance gira em torno de Rubião, que ao se tornar o
herdeiro universal do filósofo Quincas Borba sob a condição de cuidar de seu
cachorro, que também se chama Quincas Borba, Rubião parte para o Rio de
Janeiro. Na viagem conhece o capitalista Cristiano Palha e sua esposa Sofia e
logo se apaixona por ela. Rubião passa a frequentar a casa do casal. Ingenuamente,
Rubião se deixa levar pelo casal que usa Sofia como chamariz para subtrair aos
poucos seu dinheiro.
Dona Tonica é apresentada ao leitor no capítulo trinta e quatro na casa do
casal Sofia e Cristiano Palha em Santa
Teresa. Dona Tonica, logo ao conhecer
Rubião, o vê como um possível marido.
Observemos esta breve descrição que o narrador faz da cena em que Rubião é
apresentado para dona Tonica:
Rubião
caiu em si; mas não teve tempo de emendar a mão. Diante dele, ao pé da casa,
estavam sentadas em bancos de ferro umas quatro senhoras, caladas, olhando para
ele, curiosas; eram visitas de Sofia que esperavam a vinda de um capitalista,
Rubião. Sofia foi apresentá-lo a elas. Três delas eram casadas, uma solteira,
ou mais que solteira. Contava trinta e nove anos, e uns olhos pretos, cansados
de esperar. Era filha de um major Siqueira, que daí a alguns minutos apareceu
no jardim.[15]
Como podemos perceber o narrador em terceira pessoa destaca uma forte
característica em dona
Tonica : estar cansada de esperar. Aos trinta e nove anos dona
Tonica ainda esperava um casamento, o objetivo máximo que uma mulher poderia
alcançar no século dezenove.
Rubião logo vira cobiça, objeto de desejo de dona Tonica, pensa na
possibilidade de virem a se casar, mas Rubião não percebe tal interesse da
filha do major Siqueira, pois para ele, Sofia é absoluta.
O narrador onisciente penetra no pensamento, no íntimo das personagens,
inclusive dona Tonica. A filha do major Siqueira faz de tudo para chamar a
atenção de Rubião, mas vê um empecilho que pode atrapalhar seus objetivos:
percebe que Rubião só tem olhos para Sofia.
Dona Tonica vê Sofia como uma ameaça, chega a sentir raiva dela, de
querer se vingar, como podemos perceber neste trecho do capítulo quarenta e
três:
Chegaram
à casa na Rua do Senado; o pai foi dormir, a filha não se deitou logo, deixou-se
estar em uma cadeirinha, ao pé da cômoda, onde tinha uma imagem da Virgem. Não
trazia idéias de paz nem de candura. Sem conhecer o amor, tinha notícia do
adultério, e a pessoa de Sofia pareceu-lhe hedionda. Via nela agora um monstro,
metade gente, metade cobra, e sentiu que a aborrecia, que era capaz de
vingar-se exemplarmente, de dizer tudo ao marido.[16]
Não podemos achar que o motivo da revolta de dona Tonica fosse de ordem
moral, ou então, que estivesse apaixonada por Rubião. Na verdade Rubião
representava para ela a realização de uma convenção social: o casamento. Sofia
poderia vir a acabar com essa possibilidade, com essa chance de dona Tonica finalmente
poder se casar. O motivo do seu ódio também se deu devido ao fato de Sofia ser
casada e afastar um suposto pretendente de uma mulher madura e ainda solteira.
O que interessa são as aparências, as convenções sociais e o casamento é
uma dessas convenções, principalmente para a mulher.
Kátia Muricy destaca nos romances da maturidade de Machado, uma natureza
humana .[17]
O casamento com Rubião representa para dona Tonica um lucro. Não por ela
ser uma golpista, por uma questão financeira, mas por uma questão de status
social representado pelo casamento.
Dona Tonica poderia ter se casado com Rubião e ter sido feliz, poderia
até ser boa esposa, mas a intenção do narrador machadiano não é de finais
felizes, de uma sociedade idealizada e sim retratar a sociedade burguesa do
século dezenove com uma visão irônica e dura.
No capítulo setenta e oito quando dona Tonica completa seus quarenta
anos, percebemos o seu desânimo, a sua angústia de estar completando mais um
ano de vida ainda solteira:
A
filha estava ainda qual a deixamos no capítulo XLIII, com a diferença que os
quarenta anos vieram. Quarentona, solteirona. Gemeu-os consigo, logo de manhã,
no dia em que os completou; não pôs fita nem rosa no cabelo. Nenhuma festa;
tão-somente um discurso do pai, ao almoço, lembrando-lhe a vida de criança,
anedotas da mãe e da avó, um dominó de baile de máscaras, um batizado de 1848, a solitária de um
coronel Clodomiro, várias coisas assim de mistura, para entreter as horas. Dona
Tonica mal podia ouvi-lo; metida em si mesma, ia roendo o pão da solitude
moral, ao passo que se arrependia dos últimos esforços empregados na busca de
um marido. Quarenta anos; era tempo de parar.[18]
Os quarenta anos
não é um motivo de comemoração, de felicidade para dona Tonica, mas sim de
desespero pelo fato da idade estar avançando e ainda não ter arranjado um marido.
O pai e os convivas nada falam, porém, dona Tonica se sente mal por ainda não
ter alcançado o status social através do casamento. Provavelmente seja um
silêncio cruel.
No decorrer do
romance, o narrador vai descrevendo toda a perda da fortuna de Rubião para seu
sócio Cristiano Palha e o seu consequente processo de enlouquecimento.
Cristiano Palha vai
prosperando à medida que a fortuna de Rubião vai sendo dizimada. Palha e Sofia
vão se afastando do major Siqueira e de dona Tonica que agora vivem num modesto
sobrado na Rua dos Barbonos. O major percebe com mágoa este distanciamento.
No capítulo cento e
oitenta, quando Rubião já estava completamente enlouquecido e arruinado, depois
de visitar o Camacho e ser tratado friamente, encontra o major Siqueira que o
leva à sua casa já nos Cajueiros, onde está morando com a filha. Percebe que
dona Tonica está diferente, feliz, está noiva. O narrador machadiano, sempre
implacável faz ao leitor uma descrição grotesca de Rodrigues, o noivo de dona
Tonica, quando esta lhe mostra o retrato:
Dona
Tonica recebeu o retrato e fitou-o alguns instantes; mas, tirou logo os olhos,
e deixou-se estar sentada, enquanto a imaginação saiu a esperar o noivo. Chamava-se
Rodrigues. Era mais baixo que ela, coisa que o retrato não dava, — e empregado
em uma repartição do ministério da guerra. Viúvo, com dois filhos, um que estava
no batalhão dos menores, outro que era tuberculoso, — doze anos, —condenado à
morte. Que importa? Era o noivo; todas as noites, ao recolher-se, Dona Tonica ajoelhava-se
ante a imagem de Nossa Senhora, sua madrinha, agradecia-lhe o favor e pedia-lhe
que a fizesse feliz. Sonhava já com um filho; havia de chamar-lhe Álvaro.[19]
Rodrigues, o noivo
de dona Tonica, não era rico e estava longe de ser um homem bonito, porém, estava
lhe dando a oportunidade de um casamento e, finalmente o seu pai “se livrar do
trambolho”.
O narrador descreve
o dissabor e a frustração de dona Tonica no capítulo cento e noventa e dois
quando o noivo de dona Tonica morre três dias antes do casamento,
condenando-lhe ao cruel destino para uma mulher do século dezenove de continuar
solteira já na idade madura.
Segundo Marta de
Senna [20]
Pobre dona Tonica, a pretendente a esposa de Rubião e viúva antes mesmo de seu
casamento.
V
– Conclusão
As três personagens
estudadas são riquíssimas quanto ao conteúdo. Abordam um dos aspectos da
condição da mulher no século dezenove.
A ordem dos capítulos foi colocada pela ordem cronológica da publicação
dos três romances, porém, poderíamos falar respectivamente de dona Felicidade e
dona Tonica, pois estas têm em comum a ansiedade quanto conseguir um casamento
na idade madura, tendo como diferença que a primeira escolheu o conselheiro
Acácio, ama-o de verdade e quando vê que não vai conquistar seu grande amor,
vai para um convento, enquanto dona Tonica, só quer conseguir um marido.
No início do romance dona Tonica se interessa por Rubião, imagina a
hipótese de se casar com ele, mas na verdade, ao contrário de dona Felicidade,
não é apaixonada, quer apenas um marido para ser aceita na sociedade, tanto que
quando completa quarenta anos, sente não por perceber que não vai se casar com
Rubião e somente porque ainda está solteira. quase consegue casar, porém, para
seu infortúnio, Rodrigues, seu noivo, morre três dias antes do casamento.
Eugênia, ao contrário das outras duas, não sabemos se casou, enviuvou,
mesmo porque o romance em que é personagem é o único narrado em primeira pessoa
onde o narrador se distancia por um longo tempo e a encontra anos depois. Temos
somente certeza que era filha de dona Eusébia, beijou Brás Cubas e acabou num
cortiço, mesmo assim não perdeu sua dignidade.
Em O primo Basílio e Quincas Borba conhecemos mais
detalhadamente o perfil das personagens porque é permitido ao narrador
onisciente penetrar mais nas personagens e descrever com maior riqueza de
detalhes o perfil psicológico, os pensamentos e as ansiedades destas.
As três têm em comum um final não-amoroso. Dona Felicidade poderia ter
sido a esposa do conselheiro Acácio, Eugênia não se casou com Brás Cubas, não
sabemos se chegou a casar com alguém, mas, apesar de ser uma das poucas personagens
machadianas com dignidade, acabou num cortiço miserável e dona Tonica ficou
viúva antes de casar.
Bibliografia:
1. ASSIS, Machado. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de
Janeiro: Rovelle, 2008.
______________. Quincas Borba. São Paulo: Klick Editora,
1997.
2. JOBIM, José Luís. Machado de Assis: novas perspectivas sobre a
obra e o autor, no centenário de sua morte / organizadores: Antônio Carlos Secchin, Dau
Bastos, José Luís Jobim. – Rio de Janeiro: De Letras; Niterói, RJ: EdUFF, 2008.
3. MEDEIROS, Benício. O mestre da profanação. Caderno Idéias.
Jornal do Brasil. 18.08.1990.
4. MURICY, Kátia. A razão cética de Machado de Assis e as
questões de seu tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
5. QUEIRÓS, Eça. O
primo Basílio. São Paulo: Cedic, 2010.
6. REIS, Carlos. O
essencial sobre Eça de Queirós. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
2000.
7. SARAIVA, Antônio José. História da Literatura
Portuguesa. Lisboa: Coleção Saber, 1965.
8. SARAIVA, José Hermano. História concisa de Portugal. Lisboa: Publicações Europa-América,
1999.
9. SCHWARZ, Roberto. Que horas são?. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
[1] REIS, Carlos. O essencial sobre Eça de Queirós. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 2000. p. 14-15.
[3] QUEIRÓS,
Eça. O primo Basílio. São Paulo: Cedic,
2008. p. 16.
[4] Idem.
p.17.
[5] Idem p.
156-157.
[6] ASSIS,
Machado. Memórias póstumas de Brás Cubas.
Rio de Janeiro: Rovelle, 2008. p. 29-30.
[7] Idem. p.
51.
[8] Idem. p.
56.
[9] Idem. p.
61.
[10] Idem.
p. 62.
[11]
MEDEIROS, Benício. O mestre da
profanação. Caderno Idéias. Jornal do Brasil. 18.08.1990. p. 7.
[12] JOBIM,
José Luís. “Foco narrativo e memórias no romance machadiano da maturidade”
In:----. Machado de Assis: novas
perspectivas sobre a obra e o autor, no centenário de sua morte / organizadores: Antônio Carlos Secchin, Dau
Bastos, José Luís Jobim. – Rio de Janeiro: De Letras; Niterói, RJ: EdUFF, 2008.
p. 61-62.
[13] Op.
Cit. nota 6. p. 181
[14]
SCHWARZ, Roberto. “Complexo, moderno, nacional e negativo”. In: ----. Que horas são?. São Paulo: Companhia das
Letras, 1987. p. 117.
[15] ASSIS,
Machado de. Quincas Borba. São Paulo:
Klick Editora, 1997. p. 40.
[16] Idem.
p. 47.
[17] MURICY,
Kátia. “O legado da desrazão”. In:----. A
razão cética de Machado de Assis e as questões de seu tempo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988. p. 87.
[18] Op.
Cit. nota 15. p. 79.
[19] Idem.
p. 160.
[20] SENNA,
Marta de. “Quincas Borba: uma ontologia do abandono. In: ----. O olhar oblíquo do bruxo. Ensaios em torno
de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 74.
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